“Andas triste por algo que tristeza não merece – e tuas palavras carecem de sabedoria. O sábio, porém, não se entristece com nada, nem por causa dos mortos nem por causa dos vivos.”
“Nunca houve tempo em que eu não existisse, nem tu, nem algum desses príncipes – nem jamais haverá tempo em que algum de nós deixe de existir em seu Ser real.”
“O verdadeiro Ser vive sempre. Assim como a alma incorporada experimenta infância, maturidade e velhice dentro do mesmo corpo, assim passa também de corpo a corpo – sabem os iluminados e não se entristecem.”
Bhagavad-Gîtâ
Um dos temas mais desafiadores para quem lida com Bioética é a questão do aborto, que envolve o status moral do feto, uma abordagem às vezes metafísica da embriologia, e que nos leva a muitas polêmicas entre ciência e religião. Recentemente, através da leitura da obra de James Wilberding Formas, Souls and Embryos, fiquei fascinado por como os neoplatônicos entendiam o desenvolvimento do embrião humano. O autor fez um trabalho excelente em fornecer dados pouco acessíveis para um tema bastante atual, e com isso ajudou muito em ampliar o nosso campo de visão sobre o tema. É claro que os neoplatônicos possuíam um ponto-de-vista inteiramente metafísico sobre a embriologia, o que não poderia ser diferente, haja visto os meios precários ou inexistentes que havia na época.
Não podemos ter uma opinião bem fundamentada sobre algo tão controvertido sem notarmos que, desde a Antiguidade, o tema da reprodução humana baseou-se muito em sabermos qual a participação exata de cada sexo na formação do feto. Wilberding afirma que, se no início da medicina, Hipócrates acreditava na igualdade dos sexos, que tanto o homem quanto a mulher poderiam fornecer sementes fortes (androgenéticas) e fracas (ginecogenéticas), o mesmo não se deu com a embriologia posterior, dominada por longo tempo por Aristóteles. Este último notavelmente, devido a seu método sensualista e indutivo, viu no homem o fator dominante na reprodução, sendo o macho que fornecia a “semente verdadeira”.
Wilberding promove um resgate da ciência neoplatônica, que produziu tantos pensamentos maravilhosos e que até hoje é acusada de ter desdenhado do mundo material. Que isso não seja verdade, o prova Wilberding. Acontece que os neoplatônicos possuíam uma abordagem diferente, que levava em consideração a teologia, a astrologia, a matemática, o que dava a impressão de um desconhecimento de nosso mundo. No livro, com a exceção de João Filopono, todos os outros filósofos mencionados são pagãos: Plotino, Porfírio, Proclo, Jâmblico e Damáscio. Nenhum desses filósofos citados pretendia que suas descobertas ou intuições fossem tomadas como dogma ou fixadas como política de Estado. Por mais que sejam admiráveis, não necessariamente são verdadeiras e muito menos devem ser impostas a uma população de cima para baixo. É tudo filosofia, metafísica.
O interesse dos neoplatônicos pela medicina era disseminado, pois o próprio Platão foi um grande entusiasta da medicina. Existiam várias escolas médicas neoplatônicas em Alexandria segundo o autor, e vários desses médicos tinham uma preparação anterior no pensamento de Platão. Havia naquele tempo entre pensadores tão diferenciados opiniões divergentes. Porfírio, por exemplo, não acreditava na teoria das duas sementes de Hipócrates, e tendia a rebaixar o papel da mulher na reprodução, fora que ensinava que a alma só entrava na criança no momento do nascimento. Wilberding também avalia que o interesse dos filósofos que ele menciona parece ir contra o nosso senso comum. Por exemplo: eles não se preocuparam com o problema de como os sexos são diferenciados, mas deram enorme importância a teratogênesis (a má formação do embrião), talvez, como escreve Wilberding, porque isso ia contra as Ideias e sua perfeição.
O problema da teratogênesis ocupou um espaço considerável mas nunca houve consenso sobre suas causas. Existiam opiniões que creditavam à deficiência na matéria o surgimento das teratas, como foi o caso de Plotino, ou de um choque entre Formas, no caso de Proclo. O otimismo platônico via nas teratas uma parte do plano divino no geral -e Aristóteles, para sermos justos, também- e tendiam a considerar que a natureza jamais produziu verdadeiras teratas.
Apesar das opiniões de Platão sobre a embriologia não serem definitivas por causa da ambiguidade das referências em seus diálogos, ele avançou em áreas importantes, como já havia notado Schopenhauer, porque reconhecia na semente a alma apetitiva, assim como nas árvores e nas plantas. Provavelmente ele acreditava na teoria das duas sementes com a mulher tendo algum tipo de contribuição; talvez, afirma Wilberding, julgasse que a alma desce ao corpo no momento do desenvolvimento do feto, o que é condizente com sua Paideia que começa na barriga da mãe ainda, tal como está no seu diálogo As Leis; entretanto, foram seus sucessores que avançaram mais profundamente.
Os neoplatônicos também diziam que o ato tem prioridade sobre a potência, como está no livro; porém eles entraram em uma área nova que foi descobrir a capacidade de atualização, o que elevou o papel da mulher na reprodução a um novo nível. Wilberding assevera que esta explicação metafísica parte do princípio de depois da ejaculação, o pai não mais participa da formação do feto; a mulher deixa de ser apenas uma fornecedora da matéria, como era em Aristóteles, para tornar-se a atualizadora daquela potência contida no esperma, responsável também, segundo Wilberding, pela multiplicidade e extensão do embrião.
Todas os avanços que a embriologia dos neoplatônicos nos deixou de legado foi muito graças ao uso da dialética. Não seria possível chegar-se a ênfase que eles colocam no papel feminino sem este choque de contrários. Usaram da metafísica dos Oráculos Caldeus e dos mitos Órficos, textos que são muito sexualizados que logo percebe que teve o privilégio de os ler. Um exemplo citado pelo autor é este:
“Pois Trovões Implacáveis saltam dele e do útero receptor da luz (κόλποι) do brilhante raio da Hécate, que é gerada pelo Pai. Dele salta a flor anelada (ύπεζωκόϛ) de fogo e o poderoso sopro situado além dos impetuosos polos. ”
Fiz minha própria tradução de uma passagem dos Oráculos Caldeus, esta não tão sensual, mas bela
O intelecto paterno, uma vez que concebeu com um desígnio vigoroso as ideias de todas as Formas, lançou-se sibilante, e todas estas foram lançadas de uma mesma fonte, porque desde o Pai vieram não somente o desígnio, como também a perfeição. Porque o Soberano fez o mundo multiforme preexistir em um modelo intelectivo incorruptível, e perseguindo ordenadamente sua impressão, mostrou-se com sua Forma, gravadas por ideias de todo tipo. A fonte delas é única e dela se lançam assobiando outras ideias, repartidas, inacessíveis, fragmentando-se sobre os corpos cósmicos, semelhantes a um enxame, movem-se ao redor de um seno imponente, refletindo por todos os lugares os pensamentos intelectivos que colhem de modo abundante da fonte paterna, flor de fogo, no mais alto ponto do tempo que não repousa.
Mas aqui a sensualidade explode
equipado de corpo inteiro com a força de uma luz muito viva, e armado no intelecto e na alma com uma espada de três pontas, produz em sua inteligência o signo (Sÿnthëma) total da Tríade, e não utiliza os canais de fogo dispersamente, mas sim com concentração.
A entrada dos exemplos sexuais pode ter contribuído para o despertar da dialética, e isto nos oferece algumas luzes sobre o tema. Vemos a diferença entre o método de Platão e o de Aristóteles nesta matéria. Em seu comentário à Metafísica de Aristóteles (pág.212), Tomás de Aquino compara o filósofo com o dialético. Diz ele que o filósofo se diferencia do dialético porque o filósofo já possui uma ciência verdadeira, enquanto o dialético possui apenas premissas prováveis. Aqui Tomás de Aquino confunde o papel do filósofo com o do teólogo, porque o filósofo não possui desde já ciência verdadeira. O senso comum havia muito tempo afirmava a completa passividade da mulher na reprodução. Este seria o nível de conhecimento que Platão situava na eikasia.
Esta dialética fica muito mais evidente em Proclo, como ensina Wilberding, porque o papel da mulher é fazer a separação, que é a “habilidade de estabelecer a processão do homem como uma entidade distinta”, levando-a à perfeição através da reversão para sua causa (a semente do homem). Como no pensamento platônico não existe uma cisão entre o Céu e a Terra, as Formas são utilizadas por Proclo para explicarem todos os princípios formais das partes do corpo humano, afirma Wilberding. Em Aristóteles e em Tomás de Aquino as Ideias de Platão não se comunicam com o mundo sensível e são inúteis para a ciência; os neoplatônicos, fiéis ao seu mestre, elevam a ciência ao nível da noesis, e neste momento Proclo coloca em prática o esquema do diálogo Parmênides: depois da hipótese, faz-se necessário explorar outras hipóteses, ou hipotetizar a mais alta hipótese. Assim sendo, Proclo pode expressar de maneira sublime a origem das diversas partes do corpo humano, inclusive as menos nobres, como o cabelo ou a bile, por exemplo, como demonstra Wilberding.
Sobre a missão da mulher na reprodução, Proclo colocou assim seu pensamento
“O pai produz a semente, mas a semente possui sua forma/princípios potencialmente, e não em ato; por ser um corpo, não pode ter sua forma/princípios de maneira indivisa e em ato. O que, portanto, possui a forma/princípios em ato? Porque em todo lugar a atualidade precede a potencialidade, e o esperma, não sendo desenvolvido, requer alguma coisa que o traga para a perfeição. Vocês diriam que é a natureza da mãe que faz isso; essa natureza é o que atualiza a forma/ princípios e forma a criatura que virá a nascer. Não é, claro, a natureza física da mãe que faz a criança no útero, mas sua natureza que é um poder incorpóreo e fonte de movimento, como dizemos…” (Comentário ao Parmênides)
Wilberding, em um artigo relacionado ao livro, explica a arte de Proclo de colocar junto à metafísica, também a teologia e a astrologia
Proclo, então, coloca o poder da mulher em moldar esta futura vida não na natureza deste mundo, mas sim na mais elevada natureza do cosmos. A Terra pode gerar seres menos complexos, como as plantas, mas um ser humano tem outra origem. Proclo ensinava que os Logoi (razões) eram comunicados ao planeta de esferas mais altas. Ele também acreditava no poder dos ciclos lunares na menstruação das mulheres, e na geração e direcionamento da criação. A geração do embrião e o surgimento da criança eram uma cooperação entre a mulher e as esferas mais altas. A mulher e a natureza lunar eram dois atualizadores dos Logoi. A geração é como se fosse uma escala ascendente, partindo do esperma paterno, passando pela mulher e a natureza lunar, que são dois atualizadores das mais altas Formas platônicas.
http://www.academia.edu/12521398/The_Revolutionary_Embryology_of_the_Neoplatonists
Aristóteles dizia, para denegrir as Formas de Platão, que o esperma paterno já continha dentro dele todo o necessário para a geração. Wilberding menciona o pensamento de Temístio para contradizer esta tese. Temístio, na tradição platônica, nega que qualquer homem carregue dentro de si tamanha condição de criar, uma vez que isso não seria nenhuma arte já adquirida. No homem, diz Temístio, os logoi comandam a geração, porque a natureza em si é cega, mas estes logoi necessitam de uma atualização da mãe. Proclo pensava assim como vimos porque os logoi teriam que ser atualizados por alguma coisa mais nobre como as esferas celestes.
A influência da astrologia com uma certa característica do estoicismo também penetrou no pensamento dos neoplatônicos. Este caráter físico do texto de Jâmblico, reproduzido por Wilberding, é um pouco estranho à metafísica de Platão, mas fornece um modelo de embriologia interessante, porque o autor dizia que o feto não respirava no útero como nós, e nisso ele acertou, mas se a criança ia entrar ou não para a vida dever-se-ia ao fato de conseguir ou não respirar pelo nariz, com o ar chegando aos seus pulmões:
Assim como os fetos/embriões (τά βρέφη) foram semeados e requeridos no útero pela hebdômada, também, após o nascimento, em sete horas eles (os recém-nascidos) alcançam a crise se vão ou não viver. Porque todos aqueles que são nascidos vivos e não mortos saem para fora do útero respirando (Ѐμπνέοντα), mas em relação à aceitação do ar que está sendo respirado, e PELO QUAL A FORMA DA ALMA ADQUIRE TENSÃO (τήν τοΰ άναπνεομένου άέροϛ παραδοχήν, ύφ οΰ τονοϋται τό τήδ ψυχήϛ ειδοϛ), eles são confirmados (para a vida) nas críticas sete horas de uma maneira ou outra, ou para vida ou para a morte.
Jâmblico, Teologia da Aritmética, (tradução nossa a partir do inglês)
Devemos especular a partir dos dados fornecidos por estes filósofos também o porquê destas almas descerem ao mundo. A relação com tudo o que foi aqui colocado é óbvia. As ideias sobre a formação do embrião devem obrigatoriamente estar relacionadas com o motivo da descida da alma. Schopenhauer atribuía esse movimento de descida à vontade, daí porque ele julgava que o aborto seria um ato inútil, pois o movimento da vida não pode ser detido. Nós ansiamos por descer, e assim o será para sempre. A vida tem de aparecer. As Formas de Platão sempre existiram, assim como a Vontade de aparecer na matéria. A união entre esta Vontade e o conhecimento produz o pecado original (O Mundo como Vontade e Representação, Volume II).Fazendo uma comparação com João Escoto Erígena, que ensinava que a Divindade queria trazer novamente para perto dela todos os seres que se afastaram Dela ao longo do tempo, de uma forma ou de outra, Schopenhauer também acreditava que a vida tinha vir à luz para poder redimir-se. Isso talvez seja bastante instrutivo para muitos daqueles que atribuem a Schopenhauer uma ideologia de culto à morte.
As ideias de Schopenhauer terão grande impacto em Jung, e elas irão colaborar com o desenvolvimento das suas especulações religiosas, especialmente sobre a descida da Divindade à Terra (Resposta a Jó). Proclo talvez tenha um tipo de pensamento assemelhado. Aqui podemos ver que esta descida está dentro de um plano maior, que existe uma ligação entre a eternidade e o momentâneo, como está colocado em uma de suas obras
“Toda alma é capaz de descer infinitamente para a geração, e de reascender da geração para seu verdadeiro ser.”
Proclo, Elementos de Teologia (Liber de Causis)
Sem a compreensão da metempsicose platônica fica quase impossível compreender a razão dessa contínua descida. Como os dois mundos estão interligados, e o nosso é a melhor cópia possível do mundo das Ideias, o mundo por si mesmo pode ser ou não um tipo de punição, mas a vida tem um sentido de purificação e de ascensão ao mais perfeito. A narrativa a seguir dos Mistérios de Elêusis fornece um bom exemplo deste tipo de união entre os mundos:
A geração era concebida pelos gregos como um período de tempo filosófico entre o estado de ousía (οὐσία), ou essência, para o estado momentâneo de fenômeno no reino da natureza. O movimento da metalepsis (μετάληψις), ou existência fenomênica, é distinto de seu ser real. No nono dia dos Mistérios de Elêusis, os participantes pronunciavam as palavras FILHO e GENETRIX, dizendo, assim, que os seres humanos são a prole da eternidade e a natureza sua mãe.”
“A gênesis dos filósofos era a externalização, o vir-a-ser, a transição do incondicionado para o condicionado, do noumênico para o fenomênico. Este contraste é demonstrado de maneira magistral no evangelho gnóstico de João: “antes que Abraão existisse, eu sou.
Alexander Wilder, comentário aos Elementos de Teologia (tradução nossa a partir da versão em inglês)
Todos estes pensamentos tão elevados podem ser levados em consideração em termos da Bioética. Quando mencionamos o problema do aborto, o tema religioso logo entra em cena. Não que existam apenas estas visões, mas as filosofias de Platão e Aristóteles, com seus respectivos seguidores, dominam o debate ao menos no Ocidente. No caso da Igreja Católica, suas diretrizes são aristotélicas já há alguns séculos. Historicamente ele pouco se preocupou com o tema, pois basta lermos o livro de Édouard Hugon Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino, da década de 1920, e ali fica claro que o autor, um aristotélico dogmático, não abordava de maneira mais profunda o tema do aborto, e fiel ao seu sensualismo, tendia a aceitar a tradicional doutrina aristotélica da animação gradual do embrião. (1998, pág.136)
No modelo de Platão, como vimos, o pai carrega dentro de si os logoi de um futuro ser, mas ele não é o criador daquele ser por si só, não somente porque a mãe possui uma responsabilidade maior, mas também porque esta arte excede e muito sua capacidade. E temos o princípio de individuação que é a Forma, sendo que esta não coloca todas as suas possibilidades na matéria. Como Platão e seus sucessores eram contra o sensualismo, é muito mais adequado refletirmos sobre o aborto se aceitarmos que o embrião já possui nele possibilidades que transcendam nossos sentidos do que talvez trilharmos o caminho de Aristóteles. Vejamos: Hugon na passagem citada crê que a alma só desça ao corpo quando este for adequado. Tomás de Aquino, em seu comentário à Metafísica (1995, pág.104), diz que as Ideias não podem ser apreendidas porque necessitamos dos sentidos (de todos eles) para termos a verdadeira ciência. Ali ele conclui que da mesma maneira que um cego não pode ter ciência das cores, nós também não podemos nos elevar acima dos sentidos para alcançarmos as Ideias. Dificilmente neste sistema um embrião poderia ser levado em consideração.
Como demonstrou tão perfeitamente Giovanni Reale (2004, pág. 449) o princípio material do mundo entre outras coisas como necessidade. Essa necessidade corrompe a ciência (pág. 452) e é muito parecida com a Vontade cega de Schopenhauer. Esta necessidade é o posto do reino do finalismo aristotélico, pois ela é, antes de tudo, falta de ordem (ibidem). Todavia, como este reino do sensível é o reino da necessidade, aí esteja talvez o mistério de nossa vinda ao mundo: redimi-lo. Platão e Proclo diziam que Deus, unindo a alma ao corpo, gerou o universo. Reale ensina que a alma é “o anel de conjunção entre o metafísico e o mundo físico”, que no Renascimento será chamada copula mundi (2004, pág. 498).
O mundo de Platão tem um forte sentido moral, muito mais do que ético, e é a missão do homem levar ordem à desordem e realizar em uma escala reduzida a assim chamada conversão demiúrgica, pois em nosso ser existe a presença daquele Bem e que Proclo resume com este estilo:
Foi lembrado anteriormente que o poder das grandezas das hipóstases incorpóreas e das corpóreas é o que compõe todas as coisas do excedente dos elementos da perfeição superior, sejam intelectuais, vitais, do espaço e do entendimento. Denominar a igualdade -pois esta é a primeira vez que esta palavra é pronunciada- faz-se necessário, pois esta é a causa de todos os elementos da harmonia e da perfeição. Pois esta é a igualdade da qual todas as medidas se manifestam, tanto psíquicas como físicas, e seu fim é a amizade e a união. Assim, então, o Demiurgo emprega todas as medidas para dar a todas as coisas ordem, beleza e os laços (as leis ou relações que encadeiam os fenômenos) que daí nascem, como os aritméticos, geométricos, harmônicos, dizendo que a causa intelectual une as medidas e a geram, e impõe a lei da ordem, que é a igualdade demiúrgica, que não se afasta mais, na minha opinião, da verdade do sujeito.
Proclo Lício, o Sucessor (Πρόκλος ὁ Διάδοχος), Comentário ao Parmênides. (Tradução nossa a partir da versão em francês)
Ao nosso ver, uma boa análise sobre a questão do aborto deve ser usando a metafísica como base, pois está isenta daquela grande carga de emoção típica da teologia e da política. Creio que há sim um grande problema moral envolvido e que coloco assim: a mulher, como vimos, tem uma maior participação no desenvolvimento desta nova vida, e em uma situação normal, o amor de uma mãe por seu filho é sempre maior do que a do pai. Como é ela que realiza esta atualização, cabe a ela sim maior responsabilidade e autonomia para decidir se leva a gravidez adiante ou não. Este é um privilégio e uma atribuição extraordinária de natureza ao sexo feminino, por isso necessitamos de alguma concepção mais adequada para tratar do problema. É necessário aumentar o nível de consciência moral de quem pretende levar adiante um aborto, mais do que condenar a pessoa. A citação que faço sobre como acontece no Japão é um exemplo do que quero dizer:
No Japão, o aborto é considerado uma dor necessária. Isto é, apesar de que não é um bem moral, às vezes o aborto pode ser justificado ao invés de levar a gravidez até o fim. De uma perspectiva japonesa, é moralmente problemático e socialmente irresponsável trazer mais filhos ao mundo do que uma família pode suportar e sustentar. Além disso, as crenças budistas sobre o renascimento caracterizam o aborto como um adiamento da entrada do feto no mundo da samsara. Entretanto, existem consequências morais em abortar o feto. De maneira a tentar retificar as consequências kármicas negativas que surgem de um aborto, os rituais budistas japoneses, conhecido como mizuko kuyo, são realizados de maneira a acelerar a velocidade da alma do feto abortado (mizuko) para um renascimento mais positivo. Ademais, mizuko kuyo são realizados para confortar o feto. Tais rituais também servem como uma maneira dos pais arrependerem-se de más condutas sexuais que resultam em uma gravidez indesejada. O arrependimento serve para aliviar os efeitos de um comportamento imoral, especialmente quando confessado a um Buda ou bodhisattva.
Encyclopedia of Bioethics, pág.339 (tradução nossa a partir do original em inglês)
Este exemplo da moral budista é semelhante à moral da compaixão de Schopenhauer. A compaixão que devemos ter àquelas mulheres que decidem levar adiante a interrupção da gravidez. A compaixão está no nível da noesis platônica porque é uma das mais altas formas de espiritualidade. É através do olhar da alma que passamos a ver nosso semelhante em uma das situações mais difíceis que existe. Aqui a apreensão dos primeiros princípios evita que sejamos tomados pelo reino da doxa e, ao invés de oferecermos compreensão, projetemos no outro nossos ódios, preconceitos e frustrações.
A filosofia dos neoplatônicos sobre o tema tão importante como a embriologia auxilia no enriquecimento do estudo da Bioética. Estudo fundamental neste século XXI e que precisa ser mantido em um alto nível de aperfeiçoamento.
Referências
AQUINO, Tomás de. Commentary on Aristotle’s Metaphysics. 1.Ed. Indiana: Dumb Ox Books, 1995.
Encyclopedia of Bioethics. 3.Ed. New York:Macmillan Reference USA, 2003.
HUGON, Édouard. Os Princípios da Filosofia de São Tomás de Aquino- As vinte e quatro teses fundamentais. 1.Ed. Porto Alegre. EDIPUCRS, 1998.
ORÁCULOS CALDEUS. Madrid: Editorial Gredos, 1991.
PROCLO. Proclus’ Metaphysical Elements. Missouri: Thos M. Johnson, 1909.
PROCLO. Commentaire sur le Parménide. Paris: Ernest Leroux Éditeur, 1901.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. 2.Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação, Tomo II. 1.Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
WILBERDING, James. Forms, Souls, and Embryos: Neoplatonists on Human Reproduction. eBook Kindle.
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