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“Porque não devemos dizer que a liberdade de vontade obteve o poder que possui no universo para a destruição, mas para a salvação de quem a possui.”

Proclo Lício, o Sucessor

Abordar o tema da liberdade em filosofia é algo que exige uma reflexão que parece nunca ter fim. O livre-arbítrio humano, se ele existe ou não, se somos um sistema fechado ou aberto, se podemos recriar-nos ou se somos determinados, sempre forneceu material para abordagens maravilhosas como para sofismas abomináveis. Temos além disso a liberdade política, liberdade de religião, liberdade sexual, etc. É impossível mencionar todos esses temas sem incluir Teologia e religião no meio. Liberdade é algo que todos falam, mas poucos querem exercê-la, ou mesmo sabem como fazer isso. É necessário responsabilidade individual e uma poderosa metafísica por detrás para que a liberdade apareça.

Somos todos os dias apresentados a tantos temas políticos, éticos, bioéticos, religiosos, e como devemos deliberar sobre tantos assuntos? Neste momento, nosso livre-arbítrio é misteriosamente colocado de lado muitas vezes por diversos fatores filosóficos e religiosos. Quando precisamos decidir algo importante surge sempre uma autoridade do passado ou do presente para recordar-nos que não somos tão livres quanto pensamos, que necessitamos de ajuda, que terríveis consequências podem surgir a partir de uma decisão nossa, entre outras coisas. Em que consistiria a nossa tão falada liberdade de vontade, de escolha, de arbítrio, nomes que geralmente são nos apresentados?

Étienne Gilson, em sua obra “O Espírito da Filosofia Medieval”, faz uma afirmação interessante: para os teólogos medievais, o homem teria a “liberdade dos anjos”, o que seria uma liberdade impressionante, diga-se de passagem. Recordo-me que em um trabalho de faculdade mencionei esta passagem, um professor a contestou dizendo que os anjos não possuíam liberdade, pois eram determinados. Ora, se Lúcifer fosse determinado então, necessariamente Deus sendo seu Criador, Deus seria o autor do Mal. Mesmo não sabendo como responder minha interpretação, o professor não voltou atrás. A passagem mencionada por Gilson é curiosa porque em nenhuma outra época a liberdade individual pode ser tão pouco exercida como na Idade Média. Submeter sua vontade a uma instituição, refugiar-se em um anonimato, e omitir os nomes dos camponeses da história, parece-me algo bem pouco angélico…

Esta afirmação de Gilson permite que voltemos à origem de todo o debate mais aprofundado sobre o tema da liberdade de vontade, da origem do Mal e da responsabilidade humana. A Filosofia da Antiguidade não parece ter-se preocupado muito com isto. Raramente os filósofos falavam em termos morais ou teológicos. Platão e Aristóteles, os mais famosos entre eles, são bem diferentes neste caso, sendo Platão um filósofo que fala em termos morais, e Aristóteles mais em termos éticos. A moral é algo íntimo, e a ética é mais externa, mais preocupada com o comportamento e as ações diante dos outros. Aristóteles não fala em termos morais, mas em termos éticos, de deliberarmos para agirmos certo ou errado, de maneira justa ou injusta. A virtude, para ele, é um hábito. Para agirmos bem precisamos praticar bons atos, e assim seremos felizes, sendo a felicidade máxima a contemplação, que é um fim, uma imobilidade, como o seu Deus, que é o Motor-Imóvel. Aristóteles não fala em termos escatológicos, em Bem e Mal, em um julgamento após a morte, ou usa mitos, por exemplo. Ele não acreditava que a alma sobrevivesse à morte corporal, somente um vago intelecto. Julgo, analisando a Metafísica de Aristóteles, que há nele um princípio do Mal, que seria a potência. Aristóteles pensava que se alguma coisa ainda estivesse em estado de potência, haveria uma chance daquilo desvirtuar-se para a desordem. Ele não poderia admitir que um feto fosse um ser humano, porque afirmava que o ser jamais está em potência. Qualquer tentativa de transcendermos acima dos sentidos, de progredirmos e de passarmos a um estado mais elevado de existência seria condenado por ele.

Platão é a antítese de Aristóteles. Tende a moralizar os temas que aborda de uma maneira mais absoluta e nega que a virtude seja hábito ou possa ser ensinada, como dizia Aristóteles. A virtude, segundo Platão, é inata. Se a virtude fosse hábito, a partir do momento em que nos encontrássemos em uma situação desconhecida, não saberíamos como agir. Por isso existem as Formas ou Ideias, que darão origem à doutrina do exemplarismo, que são estáveis, não mudam de acordo com as leis humanas, e nos iluminam em qualquer situação. Aristóteles, ao contrário, negava a existência de uma Lei Natural, válida em qualquer época. Para Platão, de forma alguma a virtude produz felicidade, pois a verdadeira felicidade só existe fora deste mundo material, e a liberdade platônica tende a ser ativa. No Mito da Caverna, o filósofo é obrigado a sacrificar-se ensinando ou atuando politicamente. Há sim um esforço para escaparmos desta vida o mais rápido possível, mas a filosofia platônica é ativa, dialética e aberta.

Outra diferença em relação a Aristóteles é que Platão tendia a colocar a solução para os problemas humanos num pós vida. O Mito de Er, em sua República, é um exemplo claro. No Górgias também há um exemplo disso. Diversos conflitos humanos que surgem a partir do uso de sua liberdade não podem encontrar uma solução aqui e agora. A injustiça tende a imperar muitas vezes, e a verdade só pode aparecer em uma escatologia futura.

Platão dizia que a fonte do Mal, conforme explicado maravilhosamente por Giovanni Reale em seu livro “Por uma nova interpretação de Platão”, é a Díade do grande-e-do-pequeno. Resumidamente, tudo aquilo que passa de uma justa medida, e aqui entra a influência de Pitágoras, é a fonte da desordem no mundo. O que excede ou falta na natureza, na sociedade, na humanidade, é o que causa o mal. Os filósofos neoplatônicos dirão que nossa liberdade, e nossa maneira de combater o caos, é realizar uma “conversão demiúrgica”, e realizarmos aquilo que o Demiurgo do Timeu platônico faz, ou seja, levar ordem à desordem, medida ao que está fora do lugar, beleza ao informe.

As opiniões antagônicas dos dois também permanecem atualmente na área do conhecimento, mas que também está presente no problema da liberdade. O ser humano possui ideias inatas ou sua mente é uma “folha em branco”? Aristóteles, Locke e o Cristianismo afirma a opção da mente como tabula rasa. Platão, Descartes e Leibniz afirmam a existência de ideias inatas. A interferência disso na liberdade é óbvia, resvalando na educação. Se nossa mente é uma folha em branco, e como na religião cristã, fomos criados “do nada” a partir de nosso nascimento, toda nossa liberdade fica muito condicionada às informações de local e do ambiente em que nascemos. O ser humano fica então muito aparentado à situação de um animal, refém dos sentidos (veremos no final que até para os animais há uma “salvação”) No platonismo, existe uma preexistência do espírito, e ele não pode ser dobrado facilmente à nenhuma propaganda, seja de escola ou de algum ditador. Nossa liberdade é a nossa essência que já existia, e que nos liberta da escravidão dos sentidos e de uma natureza animal. Nossa responsabilidade pelas escolhas que fazemos aumenta. No esquema aristotélico-cristão, podemos questionar o porquê Deus teria que responsabilizar-nos, se fomos jogados em um ambiente “a partir do nada”? Se recebemos informações dos sentidos maléficas, porque seríamos um tipo de computador com um sistema operacional ainda por ser instalado? Qual seria nossa responsabilidade?

Com o aparecimento do Cristianismo, a filosofia platônica foi aceita no geral muito bem pelos cristãos. Aristóteles era pouco conhecido. O mais importante, no entanto, foi uma colocação mais radical do problema do Mal, e o debate bem mais amplo sobre o livre-arbítrio. Isto foi um mérito inegável do Cristianismo e que se faz presente até hoje na filosofia. Vemos, no Evangelho, Cristo afirmar que somos deuses. Ele próprio afirma ser Deus. É verdadeiramente uma liberdade nunca antes vista. O que é o homem diante de Deus? diriam os fariseus. Jesus, que também assumiu um corpo humano, superava esta contradição, pois também seria Deus. Existe uma semelhança entre a moral de Jesus com a filosofia de Platão, pois Jesus prometia que as boas ações na Terra seriam recompensadas no céu, mas de maneira alguma prometia felicidade na Terra. O mesmo dizia Platão.

Jesus coloca no Evangelho a presença do Mal na Terra: Satã é o príncipe deste mundo; os demônios agem livremente e os atos humanos são julgados de maneira radical, uma vez que seremos salvos ou condenados ao inferno. Não entra em questão quanto tempo o homem tem sobre este planeta para decidir sobre tão grandioso evento, nem sobre a origem de nossa alma a responsabilidade divina pelos eventos do mundo. Como fica a liberdade humana diante disto tudo? Jesus parece também exibir uma grande surpresa com o comportamento dos homens. Os fariseus e grande parte do povo rejeitam sua mensagem. Ele reage com grande cólera, de uma maneira contrária ao comportamento de Sócrates, que pouco se importava com a rejeição de sua mensagem. Um Deus não deveria ficar tão surpreso com a rudeza e a crueldade dos seres humanos, uma vez que Ele os criou junto com todas as suas possibilidades. Schopenhauer fazia esta observação, e Jung no Livro Vermelho afirma que em Cristo havia ainda uma vontade poderosa, no qual toda esta tentação e provação deveriam ser renovadas a cada instante, para que pudessem ser superadas novamente; Buda, em algo bem diferente, venceu a vontade e a tentação, diz Jung, e elas queimam fora dele.

No início do Cristianismo, ao menos é o que demonstra Carl Gustav Jung em seu Livro Vermelho, o problema do Mal era bem menos abordado. Partia-se do princípio que o Bem e o Mal eram governados respectivamente pela mão direita e esquerda de Deus. Era um Cristianismo verdadeiramente monoteísta. Só para efeito de comparação: No Islã esse problema não existe, porque apesar de Satã existir, o poder de Allah é tão grande que sobra muito pouco espaço para a atuação do demônio. Por isso não houve caça às bruxas no Islã. A partir da radicalização da origem do Mal pelo profeta Mani, que incorporou temas iranianos ao Cristianismo, e também pelo aparecimento de doutrinas gnósticas mais ligadas ao movimento cristão, o problema da liberdade humana tomou a forma que persiste até hoje: foi criado um inimigo implacável de Deus, que é Satã; apesar dele agir no mundo, a partir deste momento o mal passou a ser depositado na conta das más ações humanas.

Uma má deliberação, que para Aristóteles estava meramente associada a questões de justiça, passou a ter consequências cósmicas em um plano de eternidade. Devemos isso a Santo Agostinho. O mesmo desenvolve um novo modelo de abordagem do mal, que ele tomou emprestado dos neoplatônicos, que é a definição do Mal como ausência de bem, a privatio boni. É fundamental lembrarmos que a privatio boni poderia fazer bastante sentido para os platônicos, mas para o Cristianismo era altamente problemática. Explico por quê: Plotino, um dos grandes filósofos da história, via pouca diferença entre os cristãos e os gnósticos. Ambos viam o mundo com bastante pessimismo, acreditavam em demônios, em um apocalipse devastador, no fim do mundo. Nada mais repulsivo para Plotino. A presença divina estava em todas as coisas como em um reflexo de sua perfeição, e nisso nada havia de panteísmo. O universo tinha que ser eterno, pois Deus sempre age da melhor forma. Jamais haveria um apocalipse, pois Deus não pode destruir o que ele próprio criou. Mas ele não negava a existência do Mal. Segundo ele, o ser humano vem à Terra para experimentar o Mal e purificar-se gradativamente em um exercício de ascese e elevação da alma. Em uma filosofia tão otimista no geral como a de Plotino, a privatio boni, como foi dito, faz muito sentido.

Agora veremos o sistema cristão. O Mal é jogado totalmente no livre-arbítrio humano e em suas más deliberações. O problema de Satã é de difícil solução. Como já estava presente no livro de Jó, e que Jung abordou tão bem em seu “Resposta a Jó”, aparentemente Satã não incomoda a Deus de uma maneira mais acentuada. Jung não menciona isso, mas fica a pergunta: Ora, se os anjos têm liberdade, e se Lúcifer era bom e se rebelou, por que não pode voltar a ser bom novamente? Se os cristãos dizem que o mal é ausência de bem, por que o Inferno existe? Ele foi criado? Por quem? Os seus tormentos são descritos em uma maneira positiva, e nunca como uma privação de algo bom. O Inferno é eterno? Se é eterno, é um poder rival ao de Deus; se foi criado, foi criado por Deus? Foi por Satã, mas com a aprovação de Deus? Como pode ser isso? Certamente não foi criado por causa de escolhas humanas na Terra, pois nossos atos são bem fracos em um plano de eternidade.

O Universo e o mundo passam a ser criações de um deus do mal entre os gnósticos e os maniqueus; ao homem cabe o esforço de salvar-se, e o Mal passa a ter um componente metafísico bem mais do que moral. É um grande desafio responder a esses questionamentos. Coube a Santo Agostinho fazê-lo. Com ele, o livre-arbítrio coloca-se definitivamente no vocabulário filosófico. Aqui entra também um grande subterfúgio cristão, como Jung percebeu. Todo o mal vem do homem e todo o bem vem de Deus. Ao mesmo tempo em que Santo Agostinho enaltece a liberdade de vontade do ser humano, que dificilmente era sua intenção verdadeira, a consequência imediata e de lançar nas costas da humanidade toda a responsabilidade do Mal. É por isso que os católicos tendem a enfatizar enormemente que o mal é um problema moral, e associam o mal como problema metafísico ao gnosticismo. Nada disso responde o porquê a natureza possui tanta destruição, cada ser devora o de outra espécie, ciclos de destruição, doenças etc. Se Santo Agostinho fosse coerente, deveria ter isentado a Deus tamanha preocupação com os atos do homem, haja vista sua liberdade. A própria igreja perderia sua importância, mas é óbvio que aí vem o pecado original e outras ideias cristãs. E Jung também foi certeiro ao dizer que se todo o mal vem do homem, todo o bem vem dele também, e não de Deus.

As seitas maniquéias não desapareceram do mundo. Voltam com toda a força na Idade Média, onde a brutal separação do clero do povo, a pobreza e a ignorância generalizadas e uma filosofia escolástica que não se preocupava com o relacionamento entre Deus e os Homens, nada parecido com o neoplatonismo ou o protestantismo atual. Enormes discussões conceituais, obsessão por nomes e definições, enquanto o povo experimentava o mal em sua vida diária. O Catarismo surge com um maniqueísmo renovado, descartando toda a intrincada máquina feudal como obra do Diabo. O Cristianismo feudal era um grande calabouço de Satã. Surge a Inquisição para destruir brutalmente os Cátaros. O principal teólogo do século XIII, Tomás de Aquino afirma em sua Suma Teológica que os hereges devem ser torturados e, se não se “arrependerem”, devem ser queimados. O homem só era livre, em uma era em que o Diabo parecia ter dominado tudo, se colocasse sua “liberdade” a serviço de um senhor feudal que, por sua vez, respondia ao Rei, esse ao Bispo, e o último ao Papa.

Foi necessário o ressurgimento do platonismo na Europa para que um filósofo como Nicolau de Cusa pudesse brilhar. Nicolau de Cusa pretendia superar todo o sistema aristotélico que dominava seu tempo. Recusava o princípio de não-contradição de Aristóteles, que para ele não existia no reino da natureza. Jung adotou seu conceito de “coincidência dos opostos”. Somos livres, mas com alguma determinação; deuses criados, finitos infinitos. A lógica aristotélica não pode admitir isso. Como em toda a história da filosofia há um debate sobre todas estas coisas, para Cusa nada disso pode ser surpresa, pois elas estão dentro das possibilidades criadas por Deus. Jung adotará as ideias de Cusa para harmonizar a existência inegável do Mal com o Bem, e superar a partir disso as contradições. Mas o Mal existe sem dúvida. A alquimia permite a ele também uma grande compreensão sobre as possibilidades do Universo. “O que está embaixo é como o que está no alto”.

A filosofia moderna continuou o debate da liberdade, mas tendeu a abandonar o problema do Mal. Leibniz e Schopenhauer são as exceções. Kant fez uma ótima reflexão em sua Metafísica dos Costumes sobre a liberdade. A verdadeira liberdade, afirma ele, só pode existir no mundo noumênico, porque no mundo do fenômeno muita coisa precisa ser comprometida ou não pode ser aplicada. Muito mais profundo que uma simples ética, o que Kant diz tem um grande impacto sobre a humanidade e suas decisões que muitas vezes não nos parecem adequadas. Lido pessoalmente com a área da bioética, e o que Kant diz faz muita diferença. As ações nesta área não precisam muitas vezes superar a dicotomia do Bem e do Mal. Muito precisa ser comprometido ao decidirmos casos tão variados, porém, como disse Kant, a perfeição moral, lembrando bastante a Ideia do Bem de Platão, está acima de nós; podemos imitá-lo, mas com algumas “adaptações” ao mundo material.

Leibniz e Schopenhauer foram filósofos radicalmente diferentes. Leibniz afirmava a liberdade da vontade e mais do que ninguém, levou a ideia da privatio boni a alguns extremos absurdos. Como Nicolau de Cusa, Leibniz era adepto do conceito de Sintropia, e via a liberdade humana associada a uma colaboração com o Logos Divino. A Sintropia é um conceito da Física de que o Universo está ganhando força; entretanto, Leibniz não soube trabalhar como Nicolau de Cusa e Jung, por exemplo, a coincidência dos opostos. Negou radicalmente a presença do Mal dizendo, por exemplo, que era bom que as ovelhas fossem comidas pelo lobo, porque senão haveria uma superpopulação de ovelhas. É algo tão simplório que chega a ser chocante. Como afirmou Schopenhauer em sua obra sobre a liberdade de vontade, Leibniz ao menos soube corrigir Descartes e seu ensinamento, tentando exaltar a liberdade do homem, que éramos indeterminados. Leibniz errou também ao dizer que vivíamos no melhor dos mundos possíveis. Até porque isso vai contra o princípio da Sintropia, pois nele há sempre a possibilidade de o Universo melhorar. Se vivemos no melhor dos mundos possíveis, o debate filosófico fica interditado, não há mais espanto, Deus fica determinado e Suas futuras ações cessam o trabalho humano está completado. Leibniz foi vítima destas afirmações fáceis em filosofia, enganado que foi em seu zelo por defender a Deus.

Schopenhauer foi um filósofo extremamente corajoso em sua época. Rejeitou a qualquer deus, negou a liberdade de vontade e ensinou que o Mal era real. Para ele, o problema de Deus não poderia existir. O ser humano é terno, mas não há nenhum deus criador. Os sistemas hindu e budista são semelhantes. Caindo, porém, neste mundo, dominado por uma Vontade cega e todo-poderosa, passamos a estar inseridos em um espaço-tempo, que é o princípio de individuação de Schopenhauer. Interessante notarmos, e Jung o fez em várias de suas obras, pois adotou com modificações o princípio de individuação de Schopenhauer, que este espaço-tempo também é uma fonte de mal para ele. Schopenhauer, seguindo este raciocínio, ensinava que a individualidade não sobrevive após a morte. Seria um erro que a esmagadora maioria dos indivíduos que passaram e passam pela Terra fossem perpetuados fora do espaço-tempo.

O determinismo está dentro do princípio de individuação. Apesar de que a palavra aplicada ao filósofo alemão é enganadora, nossa essência nos acompanha em vida, por isso somos determinados e pouco variamos durante a vida. Criticou duramente Leibniz e a ideia de liberdade de vontade, que ele dizia só ficar bem nas bocas de padres e professores universitários de filosofia. Se fôssemos livres em escolher o que desejamos, seríamos seres completamente aleatórios em nossas escolhas. Será possível imaginarmos, se a liberdade de vontade é verdadeira, que se a humanidade quisesse, num ato de livre vontade, declarar a paz mundial e cessar todas guerras, no dia seguinte o mundo daria uma guinada de 1800 ? Schopenhauer não aceitava nenhum otimismo a respeito dos méritos humanos conseguidos a partir de uma suposta liberdade. Para ele, isso não passava de Pelagianismo, que foi uma heresia cristã que negava o pecado original e dizia que o ser humano poderia por seu próprio esforço alcançar a salvação. Neste momento, a simpatia de Schopenhauer por Martinho Lutero é clara. Lançados em uma individuação dentro de um espaço-tempo, com nossas características determinadas, nenhuma obra pode justificar o homem, segundo o filósofo alemão. Somente a Graça Divina pode fazer isto, e o Cristianismo de Lutero alcança uma verdade suprema ensinando isso. Schopenhauer, que sempre deu grande ênfase a nossa responsabilidade individual, considerava repulsivo colocar nosso intelecto sob às ordens de um deus. Em sua obra Parerga e Paralipomena, há uma crítica à Divina Comédia de Dante. Nela, o poeta italiano sacrifica sua vontade e altera, com alguma coisa de sinistro e satânico, à ordem do Bem. Sem jamais questionar aos mandamentos do Senhor, Dante se recusa a ter qualquer compaixão pelos sofredores do Inferno, que sofrem torturas atrozes. Como visto acima, Tomás de Aquino também transformou a tortura em algo desejável, ao menos em algumas ocasiões. Dante quebra promessas, e o que é bom ou mau depende da vontade do deus. Guilherme de Ockham parece dominar sua noção de justiça divina

Uma noção de liberdade ainda influente atualmente é a de Karl Marx. Apesar de seu declarado materialismo, Marx possui alguns pontos em comum com a filosofia de um Nicolau de Cusa, por exemplo. O trabalho humano nos dignifica e nos liberta, e o mundo é algo a ser constantemente trabalhado. Nesta liberdade dialética, o trabalho humano sobre a matéria gera uma síntese que é o produto de seu trabalho. A alienação, que é uma fonte do Mal em Marx, que consiste em você trabalhar, mas não usufruir os benefícios de seu trabalho, de sua vocação, de sua habilidade, é algo que soa um tanto como metafísica. A liberdade em Marx é ativa e encontra no trabalho a sua realização. Em Nicolau de Cusa, o trabalho acumulado através das eras, toda a energia criativa da humanidade, gera um excedente de força disponível para as gerações futuras, que através do trabalho, físico ou manual, trazem estas potencialidades para a atualidade. Marx pretende que a criatividade e os benefícios do trabalho fiquem com aqueles que os geraram, e não sejam dispersos de maneira injusta para terceiros em uma exploração. Se assim não acontecer, uma verdadeira liberdade não é possível.

Para terminar, uma breve reflexão sobre se os animais possuem a capacidade de agir a partir de uma noção moral. No “The Oxford Handbook of Animal Ethics”, existe um ótimo artigo escrito por Mark Rowlands. Nele, a partir do conhecimento que ele possui da ética de Aristóteles, é negada qualquer capacidade de um animal agir por motivos morais. Da mesma maneira que Kant fez séculos mais tarde, sem uma reflexão própria do ato a ser feito, que está sujeito a avaliação das outras pessoas, não pode haver uma ação moral. Rowlands produz uma pequena estória sobre um cão feliz que ajuda o cão triste. Vemos a todo momento na vida real animais ajudando uns aos outros, e até mesmo sofrendo com a dor ou a perda do companheiro. Como Schopenhauer afirmou, a compaixão, ou a caridade cristã, jamais podem ser considerados atos da razão, ou de alguma deliberação ética. A compaixão se apresenta mesmo aos animais sem qualquer experiência prévia- não é fruto de hábito. Se os animais possuem a capacidade de agir por um sentimento de compaixão em dado momento, há neles também algum grau de liberdade.

A liberdade não pode ser contestada por causa de todo o mal que a humanidade já fez. Tudo o que se passou estava dentro das possibilidades do Universo, o que de maneira alguma isenta a responsabilidade de seus autores, mas devemos reconhecer que a existência do Mal é verdadeira, e que o mesmo pode aparecer de diversas formas de acordo com a interpretação de cada filósofo. Em nosso século, e Jung entendia da mesma maneira, deveríamos encarar de frente este problema, e não mais escaparmos do desafio com fórmulas simples como a da privatio boni.

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