Um pensamento gnóstico

 

“Desistindo de procurar por Deus, a criação e coisas como essas, busques por Ele dentro de ti e aprendas quem é que agrega em Si absolutamente todas as coisas dentro de ti, e digas: “Meu Deus, minha mente, minha compreensão, minha alma, meu corpo”. E aprendas de onde vem tristeza, a alegria, o amor, o ódio, a vivacidade involuntária, a sonolência involuntária, a raiva involuntária e afeição involuntária; e se tu investigares corretamente estes (pontos), O descobrirás, unidade e pluralidade, em ti mesmo, de acordo com aquela partícula, e saberás que Ele encontra a conexão como sendo tu mesmo.”

Monoimus, gnóstico árabe, Século II

Imagem: Tomasz Alen Kopera

Os Gnósticos: o mundo deve ser salvo

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“A inteira corrupção será salva, pois vim a conhecer, enquanto pensava, que em todos os aspectos o mundo perceptível dos sentidos é digno de ser salvo inteiramente”

Marsanes, texto gnóstico Setiano

Resenha: O Amor e o Ocidente, de Denis de Rougemont

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Denis de Rougemont acreditava que o casamento vivia uma crise (no início do século XX) sem precedentes. Para ele, essa crise teria tido início séculos antes, e em seu livro O Amor e o Ocidente ele pretende apontar os culpados por ela.

Sua tese é sobre a antítese amor e paixão. O casamento, no Ocidente, teria funcionado relativamente bem ao menos até o século XII, pois até aquele momento estaria protegido sob as bênçãos do Ágape cristão. Para quem ler esta obra, essas minhas palavras não ficarão tão óbvias assim, pois o autor não nos explica como o casamento teria funcionado anteriormente. Temos a impressão que o auge desta instituição teria sido na Alta Idade Média, especificamente nos séculos VIII, IX e X, que reconhecidamente foi uma época de grande elevação moral, ao menos é que posso deduzir das ideias do autor. [Read more…]

Sobre o gnosticismo de Paulo e o problema do Mal

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O que liberta é o conhecimento de quem nós fomos, e em quê nos tornamos; onde estávamos, e onde fomos lançados; para onde nós caminhamos, e de onde seremos redimidos; o que é o nascimento, e o que é renascer.”

Valentino (100-160)

 

Estas sábias palavras resumem bem o espírito gnóstico. Muito mais do que uma religião organizada, até porque suas origens são bastante confusas e dispersas, os gnósticos representam uma tentativa de responder ao mistério da existência do mal no mundo. Se a filosofia nasce do espanto, como diz Platão, pensar sobre o enorme sofrimento das criaturas que habitam este planeta não é algo menos importante. Os gnósticos souberam evitar a armadilha de alguns sofismas como negar a existência do mal, vendo-o como simples ausência de bem, ou de lançar a culpa de tudo de ruim que acontece no mundo nas costas do ser humano. Talvez o gnosticismo tenha nascido mais de uma intuição, de um sentimento de que alguma coisa estava, e está errada, no mundo. [Read more…]

Resenha: Os Cátaros, de René Nelli

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A história do nascimento do movimento cátaro na Europa Ocidental é bem difícil de ser traçada, porém o autor René Nelli -admirador confesso dos cátaros- conseguiu descrever o movimento herético de maneira bastante satisfatória na maioria das vezes. Digo isso porque Nelli não consegue explicar as origens do catarismo da maneira que alguém interessado em um estudo mais profundo da seita esperaria; nem foi muito convincente em descrever o movimento como uma variação do Cristianismo. [Read more…]

Resenha: Tipos Psicológicos, de Carl Gustav Jung

Jung

 

Estudei muitas matérias de psicologia na faculdade, mesmo assim não creio que estou qualificado para fazer uma análise mais profunda da obra de Jung devido à sua complexidade. Tipos psicológicos foi o primeiro livro que li do psiquiatra suíço. A tese de Jung é sobre dois tipos de personalidade: a extrovertida e a introvertida. No começo do livro ele faz uma comparação entre esses dois tipos de personalidade fazendo um estudo sobre a vida de alguns personagens históricos. Somente no capítulo X, ou seja, no final do livro, é que Jung divide as personalidades extrovertida e introvertida em alguns subgrupos. Ali é que ele escreve sobre suas concepções da psique humana em seus próprios termos. Antes de finalizar esse livro, Jung escreveu uma espécie de dicionário esclarecendo diversos termos de psicologia para quem quiser melhor compreender seu pensamento. Isso é muito útil para quem é novo nessa ciência.

Achei a parte puramente filosófica mais interessante do que a parte psicológica da segunda metade do livro. Nela, Jung expressa suas opiniões sobre temas como o debate medieval sobre a questão dos universais, que levou a um confronto entre nominalistas e realistas. O que percebi é que Jung não compreendia ( e não tinha simpatia) por uma filosofia e teologia que fossem ortodoxas. Ele claramente está do lado daqueles que foram rejeitados pela Igreja como Orígenes, Abelardo, Mestre Eckhart, etc. Jung seleciona esses personagens históricos e os define segundo seus critérios como extrovertidos ou introvertidos. A respeito dessas classificações, elas não parecem ter a mesma importância que o capítulo X.  Esse último acaba por definir entre introvertidos e extrovertidos homens e mulheres do mundo moderno em um sentido geral. Jung tem predileção por elementos gnósticos e fantasiosos ( irracionais) do pensamento de Mestre Eckhart, do Hinduísmo e de Nietzsche. É claro que a psicologia de Jung valoriza muito, eu creio, a fantasia e a gnose; no entanto, para quem está acostumado com os termos racionais da filosofia, isso pode parecer estranho. A psicanálise freudiana é vista por Jung como uma forma de repressão ao elemento fantasioso e de supervalorização da sexualidade. Existe uma passagem no Fausto de Goethe que Jung cita e que pode exprimir o que ele pensa. Fausto diz: ” o sentimento é tudo”. O elemento fantasioso faz parte da natureza humana para Jung. Entretanto, a fantasia só possui valor se transformada em matéria-prima aproveitável, ele diz.A divisão final entre tipos irracionais e racionais, tipo perceptivo extrovertido, tipo intuitivo extrovertido, entre outros, é interessante, porém, eu não compreendi essa parte.Gnosticismo, elementos bíblicos e mitológicos, e obras poéticas alemãs ajudam a tornar o livro de agradável leitura. Tudo isso é uma antecipação para a tese final de Jung sobre os tipos psicológicos.

 

 

 

A Tentativa de Imanentizar o Eschaton, por Eric Voegelin

Eschaton

O filósofo alemão Eric Voegelin criou essa expressão na sua obra Nova Ciência da Política (Editora Universidade de Brasília, 1982). Na edição brasileira da Universidade de Brasília, ela é mencionada na página 92, no capítulo “gnosticismo- a natureza da modernidade”. Voegelin escreve: “o homem e a humanidade agora têm sua realização, mas ela está além da natureza. Mais uma vez, nesse caso, não há um eidos da história, porque a sobrenatureza escatológica não é uma natureza no sentido filosófico e imanente. Portanto, o problema do eidos na história só se põe quando a realização transcendental cristã é imanentizada. Contudo, tal hipótese imanentista do eschaton é uma falácia teórica. As coisas não são coisas, nem possuem essência, em virtude de uma declaração arbitrária. O curso da história como um todo não é objeto da experiência; a história não possui um eidos, e isso porque seu curso se estende ao futuro desconhecido. Assim, o significado da história é uma ilusão; e esse eidos ilusório é criado ao se tratar um símbolo de fé como se fosse uma proposição relativa a um objeto da experiência imanente.” [Read more…]

Resenha de A Religião Gnóstica ( The Gnostic Religion), de Hans Jonas

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Hans Jonas e a religião gnóstica
Décadas após ser publicado, The Gnostic Religion mantém-se como a principal fonte para o conhecimento do fenômeno gnóstico. Jonas inicia seu livro situando o leitor na história da Grécia e do oriente próximo. Os impérios do oriente como a Pérsia e a Babilônia eram instáveis, e na época a conquista de Alexandre, estavam enfrentando uma decadência cultural. O que havia de novo no oriente era o sincretismo religioso, o monoteísmo judaico, a astrologia Babilônia e o dualismo iraniano. Nessa mesma época na Grécia, o mundo da Pólis desaparecia aos poucos.

A grande contribuição dos orientais era o sincretismo religioso, ou a mistura de deuses, enquanto o espírito grego havia criado o Logos, o método teórico de exposição, sendo que os orientais tinham o seu pensamento marcado por imagens e símbolos exemplificados nos mitos e rituais, sem expô-los de uma maneira lógica. Jonas explica que muito da cultura oriental foi assimilado pelo pensamento grego, mas que existia uma outra parte que foi rejeitada e circulava nos subterrâneos e que estava por explodir.

Era uma mistura de mitologia oriental e elementos da filosofia grega, especialmente do platonismo. No início da era cristã, a onda oriental manifesta-se com maior força: o judaísmo helenístico, principalmente a filosofia judaico-alexandrina, a expansão da astrologia babilônica, coincidindo com a manifestação do pensamento fatalista no ocidente, com cultos orientais misteriosos, o início do neo-pitagorianismo e a ascensão da escola neo-platônica.

Depois de situar o leitor nesse mundo do sincretismo helênico, Jonas define essa onda oriental e o termo gnose. O movimento tinha uma característica religiosa, estavam preocupados com a salvação, exibem uma concepção transcendente de Deus e possuem um acentuado dualismo como Deus e o mundo, espírito e matéria, bem e mal, vida e morte, fazendo que esse movimento seja caracterizado como uma religião dualística e transcendente de salvação.

O termo gnose é grego e significa conhecimento. Santo Irineu irá identificar a gnose como uma heresia cristã, mas Hans Jonas também falará sobre um gnosticismo judaico pré-cristão, um gnosticismo helênico-pagão e a religião de Mani. A gnose é o conhecimento de Deus e também a tentativa do possuidor do conhecimento de fazer parte da essência de Deus. Adolf Von Harnack, em uma frase famosa, definiu a gnose como a “aguda helenização do cristianismo”. Jonas estabelece alguns dos principais dogmas do pensamento gnóstico:

Teologia: exibe um dualismo radical, sendo a divindade estranha ao universo o qual não criou e não governa. O mundo foi criado pelos poderes mais baixos( arcontes),e o Deus transcendente está oculto de todas as criaturas, e não é compreensível por conceitos naturais.
Cosmologia: o universo é o domínio dos Arcontes ,sendo considerado uma vasta prisão, cujo calabouço é a Terra, a cena da vida do homem. Os arcontes dominam o mundo e utilizam, por exemplo, a lei mosaica para escravizar o homem. Os arcontes têm como líder o Demiurgo, o deus-criador do Timeu de Platão.

Antropologia: existe o mundano e o extra-mundano. Tanto o corpo como a alma são produtos de poderes cósmicos que o formaram na imagem do primeiro homem( arquétipo). Preso na alma está o espírito, ou pneuma, a parte divina que caiu na prisão do mundo. Preso na carne, o pneuma está adormecido e intoxicado pelo veneno do mundo. Está na ignorância. Seu despertar e libertação se dará com o conhecimento.

Escatologia: o mais importante é o conhecimento do Deus transcendente, como diz uma famosa fórmula dos valentinianos( seita gnóstica). “ o que liberta é o conhecimento do que nós éramos e do que nos tornamos; de onde estávamos e onde nós fomos lançados; o que é nascimento e o que é renascimento”.

Moralidade: os pneumáticos, ou seja, os possuidores da gnose estão separados do resto dos homens. Daí seguem dois tipos de caráter: o ascético e o libertino. O primeiro possuidor da gnose evita todo o contato com o mundo; o segundo está livre da tirania da lei de Moisés. Tu deves ou tu não deves está abolido. O gnóstico já está salvo, portanto a lei não se aplica a ele. Com essa moral antinomista, o pneumático viola as leis do Demiurgo e confunde o domínio dos Arcontes, permitindo assim de forma paradoxal o caminho para a salvação.

Segue um capítulo destinado à exposição do imaginário gnóstico e sua liguagem simbólica como a luz e a escuridão, vida e morte, a queda e a saudade da verdadeira morada, a intoxicação do mundo, a noção do chamado e o mito gnóstico da queda de Adão e Eva.

Na segunda parte do livro, Jonas apresenta os sistemas de pensamentos gnósticos, começando com Simão, O mago, na sequência o conhecido hino da pérola que é um dos mitos mais famosos do gnosticismo. O gnóstico Marcião de Sinope merece um capítulo à parte, pois sua heresia foi uma das maiores ameaças à fé cristã e suas ideias voltaram a aparecer ao longo da história. Jonas diz que o pensamento de Marcião estava livre de toda a fantasmagoria dos gnósticos comuns e que o mais importante em seu pensamento é que o Deus criador é estranho ao mundo.

Na teologia de Marcião existe a antítese entre o deus-criador( Demiurgo) e o Deus escondido e desconhecido. A mais importante antítese é entre o Deus justo e o bom Deus. O Deus justo é o Deus da lei do antigo testamento e o bom Deus é o do evangelho. O bom Deus é estranho ao mundo, desconhecido do homem, o qual não é seu criador. A sua conclusão a respeito da existência de dois deuses resultará em um ascetismo que condena o casamento e a reprodução, sendo que seu ascetismo, ao contrário do cristão, não buscará a santificação da existência, mas é resultado de uma revolta contra o cosmos.

O livro ainda possui dois capítulos relativos à gnose Valentiniana e a de Mani. Jonas demonstra que o pensamento gnóstico era não só hostil à religião cristã, mas também ao pensamento clássico. A gnose destruía a noção de cosmos da filosofia grega. A visão de encanto e beleza que o céu produzia para os antigos filósofos foi completamente desvirtuada pelos gnósticos. A música das esferas não era mais ouvida e o céu passa a ser visto com terror. A visão gnóstica não é nem pessimista nem otimista, mas é escatológica. O mundo é uma prisão e mau, mas existe a salvação no Deus extra-mundano.

Outra coisa que faltava aos gnósticos e o filósofo Plotino percebeu isso, era a falta da ideia de virtude. Para os gnósticos nada de bom poderia vir deste mundo. Santo Irineu conta que os gnósticos achavam que não precisavam de obras para a salvação porque ela viria pelo simples fato do fiel ser espiritual, sendo o pecado permitido. Algumas seitas gnósticas pregavam que através de sucessivas reencarnações o homem teria que experimentar todo o tipo de vida e pecados para ser libertado do poder dos anjos criadores, assim podendo ascender até Deus.

A gnose voltaria a surgir em diversos períodos da história como no caso do catarismo, nas diversas seitas do protestantismo, basta ver o lema de Lutero “crê firmemente e peca muitas vezes”, claramente de origem gnóstica, assim como sua crença e a de Calvino na existência de um duplo deus ( ver Max Weber). Eric Voegelin também identificará a gnose no comunismo e no nazismo. A religião gnóstica é um tema complexo e fascinante e essa obra de Hans Jonas é a melhor introdução que possuímos sobre esse tema.