Para quem quiser saber sobre as implicações do pensamento platônico na área da Bioética (e se você também gosta da série Black Mirror), clique aqui https://felipepimenta.com/2016/07/25/problemas-e-possibilidades-do-transumanismo/
Platão foi o maior filósofo de todos os tempos. Na minha opinião, sua filosofia é a mais completa, metafísica e humana que a de Aristóteles. Seus escritos em forma de diálogo são de uma beleza incomparável em relação a qualquer outro filósofo que já tenha existido. Vou analisar a filosofia platônica em seus principais aspectos, como o mundo das Ideias, a psicologia, a existência de Deus, o domínio da opinião, a moral e a política.
A Ideia
No começo, podemos definir a teoria das Ideias dizendo que o mundo sensível é apenas uma cópia do mundo ideal, e que o objeto da ciência é o mundo real das Ideias. O mundo inteligível é estudado na dialética, e o mundo sensível é o domínio da opinião ( DOXA).
A existência do mundo Ideal é baseada em duas provas, segundo Thonnard: uma de ordem lógica, e outra de ordem ontológica.
A prova lógica: Platão em nenhum momento põe em dúvida a existência da ciência, que para ele é um fato indiscutível; então, é necessário um objeto estável e permanente, que possa permanecer no espírito. Ora, para Platão, esse objeto não se encontra no mundo sensível, pois ele acredita, como Heráclito, que o mundo é “um infinito e perpétuo tecido de movimentos”, onde “tudo passa como as águas das torrentes”, sendo que nada permanece estável. Surge, então, a necessidade da ciência encontrar seu objeto: o mundo inteligível das Ideias.
Prova Ontológica: Thonnard diz que o mundo sensível prova a existência do mundo ideal como sombra da realidade. Sabemos disso pois os objetos desse mundo são mais ou menos perfeitos, e estas participações supõem a existência de uma fonte que possui a perfeição em estado pleno. Esse é o mundo inteligível, que é o objeto da ciência.
A pluralidade das Ideias podem ser provadas de duas maneiras: uma prova direta e outra indireta.
Thonnard assim define essas provas: a prova direta é resultado da experiência racional, e o objetivo é libertar do mundo sensível as perfeições estáveis. O mundo sensível não pode apresentar um objeto real que possa ser fonte de um conhecimento científico, por isso é necessário pedir auxílio ao mundo das Ideias.
Prova indireta: Sabemos que negar a pluralidade das Ideias destruiria toda a ciência, pois ela é um sistema coordenado de juízos. Para a ciência existir são necessários objetos estáveis para um ser inteligível, e também uma pluralidade de Ideias para construir um conjunto de juízos. Sendo assim, Thonnard conclui que deve-se conceder a Heráclito que os objetos sensíveis estão em perpétua variação e misturados com seus contrários; que devemos rejeitar Parmênides, pois o Ser que tem estabilidade desejada, mas destrói todo o juízo pela sua absoluta unidade; por último, Sócrates liberta do sensível perfeições múltiplas, mas estáveis, que podem definir-se. O objeto da ciência não é o mundo sensível, mas os gêneros que Sócrates definiu, tantos os substanciais, como as qualidades, pois esse é o mundo das Ideias.
A natureza das Ideias
Platão definiu quatro propriedades:
A espiritualidade, que são de ordem inteligível, portanto, invisíveis aos olhos humanos e apreendidas pela inteligência
A realidade, pois para Platão as Ideias não são conceitos abstratos do espírito, nem pensamentos do Espírito divino, mas são realidades subsistentes e individuais, sendo objeto da contemplação científica e fonte das realidades da terra. Da realidade, derivam-se duas propriedades:
A imutabilidade, que exclui toda a mudança, pois são eternas;
A pureza, pois realiza a essência plenamente e sem mistura, e cada uma na sua ordem é perfeita.
Método de Platão
No filósofo grego, o método principal é o dialético, com um aspecto lógico, um psicológico e a doutrina metafísica da participação das Ideias.
O aspecto lógico é a continuação do método Socrático, em que Platão insiste no papel da purificação; propõe que a razão incite à investigação das essências graças à Dialética do amor, e conduz o espírito por degraus sucessivos até à intuição do mundo ideal.
O método da purificação é àquele que procura liberar a alma intelectual do peso da matéria através do domínio do eu. Controlando às paixões desordenadas, submetendo as tendências inferiores à razão, o homem está a caminho das realidades eternas, porque as coisas do mundo sensível não são mais do que a sombra. Libertando à alma do corpo, ela eleva-se até o mundo das Ideias, pois o objetivo do filósofo, segundo Platão, é aprender a morrer( Fedon).
O mundo Sensível e o domínio da opinião
Platão diz no Timeu: ” O que é fixo e imutável supõe razões fixas e imutáveis. Quanto à imitação do que é imutável, convém falar dela em forma verossímil e analógica… Posto que as minhas palavras não tenham mais inverossimilhança que as dos outros, há que nos contentarmos com elas…convém em semelhante matéria limitarmo-nos a discursos verossímeis.” Thonnard explica que isso sugere explicações de ordem mítica.
O mundo sensível possui em primeiro grau as percepções efêmeras das coisas sensíveis. Thonnard explica que a atenção para ouvir ou recordar-se de belas músicas, procurando a mais harmoniosa, só dá origem à conjectura.
No segundo grau temos o esforço de estabilização em que se esboçam as definições científicas; porém, fica incompleto e provisório porque se baseia em opiniões aceitas pelo povo ou transmitidas por poetas e tradições religiosas( mitos como o narrado em Fedro, em que o cavalo branco representa o coração, e o cavalo negro a concupiscência).
A existência de Deus
Platão recorre ao mito para provar a existência de Deus. Temos duas provas:
Prova baseada na existência do mundo: Deus é o Demiurgo. Platão reconheceu que para uma obra ter origem, é necessário que haja um artífice, e expõe o seu Demiurgo em linguagem mítica. Ele, depois de ter contemplado o mundo Ideal, decidiu fazer o universo à sua imagem.
Prova baseada no movimento: Deus é a alma real. Platão verifica que o mundo está sujeito a um movimento ordenado, como o movimento circular das esferas celestes, que é pela sua estabilidade, a própria imagem da inteligência. Para que exista o movimento, é necessário um motor. Platão sugere dois motores: um corpóreo e a alma. O corpo é inerte e é sempre movido por um outro antes de se mover, e a alma é o motor que tem em si o princípio de seu movimento, e pode comunicá-lo sem receber antes( As Leis). a alma domina o corpo que morre.
A psicologia
Para Platão, a alma está acidentalmente unida ao corpo, e é uma substância espiritual completa. Existem três teorias para estabelecer essa doutrina:
A preexistência da alma que é definida pela teoria da reminiscência, porque Platão desconhecia a criação ex nihilo do judaísmo e cristianismo, de forma que explicar a existência de ideias presentes em nós desde o nascimento ficava impossível a não ser por uma vida anterior. Platão explica essa vida anterior por um mito em que as almas cometem certas faltas e são punidas com a união com o corpo humano.
A união acidental da alma com o corpo difere a teoria de Aristóteles, porque Platão acreditava que o corpo impedia a alma de alcançar à sabedoria por imposição de necessidades tirânicas, e que a alma prejudicava o corpo porque investigações filosóficas profundas levavam à exaustão corporal.
A imortalidade da alma que pode ser demonstrada pela participação no mundo ideal, na Ideia da vida e na necessidade moral.
A moral
Platão quer que a Ideia do bem seja derramada na natureza humana. A felicidade para ele não está identificada com o prazer, pois era isso que os sofistas pregavam. Falta ao prazer estabilidade e plenitude, pois novos desejos levam a novos sofrimentos em um movimento que parece não ter fim. Ele identifica a sabedoria com a felicidade, mas acredita na desigualdade das inclinações dos homens para a prática da virtude; uns se contentariam com a coragem, outros com a temperança; poucos, no entanto, buscariam à virtude perfeita. Esses possuiriam o germe divino da sabedoria.
O Estado para Platão
A existência do Estado é necessária para a prática da virtude, mas Platão o concebia como pequenas cidades autônomas. Dividia o povo em classes sociais como os trabalhadores, os guerreiros, os arcontes e os escravos. Nesse ponto ,Platão tem uma vantagem monumental sobre Aristóteles, que Thonnard, fiel ao seu aristotelismo dogmático, não menciona: ele considera a escravidão um mal e que deveria ser evitado. Nas penas da vida após à morte do Hades platônico está a de ter possuído escravos. Platão também sugeriu a igualdade de homens e mulheres, concedendo uma grande dignidade a essas últimas. A educação deveria ser igual para ambos os sexos. A forma de governo mais adequada para os cidadãos é a aristocracia ou a monarquia, de preferência governada por um rei-filósofo. A democracia é condenada.
Agora Platão nos narra o seu mito da caverna. Voegelin diz que o mito prepara o conhecimento da PAIDEIA. A educação de um homem é incompleta se ele não experimentou a verdade da alma, a PERIAGOGE. Depois do homem ser solto da caverna e ter experimentado a contemplação divina, ele quer ficar lá para sempre(517). Esse homem( filósofo) que experimentou a eudaimonia irá sentir-se inclinado a permanecer na contemplação e não irá querer voltar para os seus companheiros prisioneiros. Haveria então a tentação de esse filósofo tornar-se apolítico. Mas ele deve descer e sacrificar-se à polis.
Ele então desce( KATABATEON). Sócrates desceu para ajudar os prisioneiros da caverna e consegue discernir as sombras(EIDOLA) das coisas reais. Como o filósofo viu o AGATHON, a polis sob seu comando será governada com uma mente desperta( HYPAR) em vez de ser conduzida como as outras Pólis como num sonho(ONAR)
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A filosofia platônica foi adotada pela igreja católica até o século XIII, herdada pelos padres da igreja, especialmente Santo Agostinho. A partir de São Tomás de Aquino, e pelas influências de Aristóteles, a posição da igreja em relação à mulher muda: a igreja que antes concedia grande liberdade para as mulheres no cristianismo, permitindo até o divórcio, torna-se hostil a essas liberdades, pregando a clausura para as freiras e impedindo algo completamente natural e humano que é o divórcio. A mesma filosofia aristotélica que criou dificuldades para São Tomás de Aquino em relação à escravidão, impediu a igreja católica de oferecer respostas ao gigantesco tráfico de seres humanos vindos da África para as Américas. Os protestantes ingleses, hostis a Aristóteles, e mais abertos a Platão, foram aqueles que iniciaram o movimento abolicionista mundial.
Bibliografia: F.J.Thonnard, Compêndio de História da Filosofia
Eric Voegelin, Ordem e História, Platão e Aristóteles
Abaixo seguem alguns resumos das principais obras de Platão
A República
https://felipepimenta.com/2017/12/12/resenha-a-republica-de-platao/
Timeu
https://felipepimenta.com/2017/12/13/resenha-timeu-de-platao/
Filebo
http://arvoreetrinta.com/2013/06/19/resenha-do-filebo-de-platao/
Filebo é um diálogo que trata do prazer. Sou da opinião que antes de ler esse diálogo o leitor já deve ter lido o Parmênides e o Político para uma melhor compreensão. Participam do diálogo três personagens: Sócrates, Protarco e Filebo. No início, Filebo faz a afirmação de que a vida de prazeres é mais desejável do que a vida do saber. Sócrates então sugere que se for demonstrado que o prazer é superior e não precisa de nenhum outro bem, então o prazer será o vencedor; caso seja o saber, o mesmo acontecerá. Uma pequena discussão entre Sócrates e Protarco acontece pelo fato desse último não fazer uma diferenciação entre os graus dos prazeres. Depois de algumas perguntas e respostas, Sócrates vence o debate.
Começa então um debate sobre as relações do Uno e do Múltiplo. Nesse ponto, Giovanni Reale( Para uma nova interpretação de Platão) afirma que “depois de ter destacado que a conexão do Uno e dos Múltiplos estabelecida pelo raciocínio encontra-se em toda parte e sempre, em todas as coisas de que se fala, Platão explica que, para superar as dificuldades que isso comporta, é necessário proceder pela via pela qual foram feitas todas as descobertas no âmbito das artes”. Platão fala sobre o mito do deus Thoth e como ele criou a arte da gramática, pois o homem com as vogais e consoantes isoladas não podia, por si só, compreendê-las. A voz, diz Reale,” é uma espécie de Ideia e também é uma multiplicidade ilimitada em cada um e em todos”. Com isso “obtém-se uma trama lógico-ontológica traduzível em número, que permite passar, depois, aos sons sensíveis individuais.”(Reale)
O diálogo fala sobre questões metafísicas na sequência. Sócrates que definir o que é ilimitado, o limitado e a mistura para saber a natureza do Uno e do bem, pois uma vida apenas de saber ou de prazer é impossível.Ora, lendo o diálogo entendemos que Sócrates fala sobre o que é ilimitado, como o são o frio e o quente, e o limitado, que são o dobro e a classe dos números que tudo torna harmonioso, com isso o que é lento e rápido formam a harmonia da música, e o quente e o frio geram as estações. Sócrates então afirma: “Essa deusa, belo Filebo, observando como o excesso e a perversidade universal conquistavam a predominância, devido à ausência de limite para os prazeres e o seu gozo, instaurou a lei e a ordem, que impõem limite. Dirias que ela, com isso, causou dano; eu, ao contrário, diria que ela promoveu a salvação.”
Com isso temos quatro categorias: o limitado, o ilimitado, a mescla entre esses dois e a quarta que é a causa dessa mescla e geração que é o Demiurgo. Com isso estabelecido, Sócrates reafirma que a inteligência ( Nous) é o nosso rei no céu e na Terra e define o homem como uma mistura de prazer e saber. O livro é um pouco parecido com a Ética a Nicômaco de Aristóteles. O meio-termo é buscado durante o diálogo, e o Uno é considerado a causa da mistura, a coisa de supremo valor, e que por ser o bem, o Uno transforma a mistura em algo bom também( Reale).
Max Pohlenz define de maneira admirável o que Platão entendia como Medida: ” Para Platão, a eudaimonia consiste em um prazer puro: a alegria refere-se ao belo sensível, no qual entram em primeiro lugar as formas geométricas e o gozo que traz a atividade espiritual(…) Pode nos parecer estranha a importância atribuída à medida, posta no vértice da escala de valores: mas na realidade Platão entende por medida o absoluto, e escolhe essa denominação porque o absoluto inclui em si não só o bem entendido em sentido finalístico, mas também o belo e um princípio de ordem e de proporção e constitui a causa primeira do seu existir concreto e a norma da sua exata mistura.” (citado em Reale)
A Ciência e a Educação em Platão
Os diálogos platônicos Protágoras, Sofista e Teeteto são referências fundamentais para compreendermos o modo como Platão entendia a ciência. Há milênios eles nos ensinam a melhor maneira de procuramos o avanço da ciência e do conhecimento, e nos servem de aviso sobre como não fazer ciência, uma vez que dois dos grandes obstáculos que o filósofo enfrenta são: uma “ciência” produzida por uma indução feita a partir dos dados dos sentidos, e o discurso, ou retórica, do sofista sobre o não-ser, que nada mais é do que uma aparência de sabedoria.
Sócrates provavelmente teria tido problemas em outras épocas da humanidade nas quais fazer perguntas era algo perigoso. E não foi no gnosticismo que as perguntas foram proibidas, como afirmava Eric Voegelin, mas nos esquemas históricos. Ao menos Protágoras aceitava que Sócrates fizesse suas perguntas, e Sócrates aceitava que suas ideias fossem rejeitadas. Porém, Platão detectou nos sofistas uma grande ameaça à filosofia e à ciência. Os sofistas, no entanto, nunca desapareceram. Discursos vazios e empolados sobre o nada crescem enormemente em tempos de crise.
Protágoras foi certamente um habilidoso adversário de Sócrates, como vemos em 339c. Os sofistas eram professores que recebiam pagamentos em troca de um treinamento, odioso aos olhos de Platão, para a produção de discursos que servissem a qualquer ocasião. O que importava era, não a busca da verdade, mas convencer a multidão da tese adotada. O que é mais ou menos o que acontece no Direito. No Sofista 225b, Platão denuncia a dialética erísitca dos sofistas. No século XIX, Arthur Schopenhauer reviveu a dialética erística com alguns exemplos que poderiam ser usados numa disputa. Não fez isso, claro, porque acreditava que ela deveria ser usada em ocasiões normais, mas excepcionalmente, apenas. Os sofistas amam a arte da disputa, do debate 225c. O método das disputas, como na Idade Média, não visa criar ciência, mas detectar falhas no argumento do adversário. O sofista, por ser amante de disputas, é também escorregadio, e difícil de ser capturado 226a. Como percebemos atualmente, somente disputar, tentar refutar, ou qualquer outro nome que se dê, não gera nenhum conhecimento válido, porque o sofista, como Protágoras fez com Sócrates 339c, joga para a plateia. Ele quer aplausos e jogar lama no pensamento alheio.
O sofista, numa das definições de Platão, é um caçador de homens 222b. A retórica é a “rede” pela qual os sofistas capturam suas presas. Platão (ao contrário de Aristóteles) desprezava a retórica. Para ele, a retórica não passava de simulacro. O ponto principal para a discordância de Sócrates e Protágoras em 319a-e é a impossibilidade, para Sócrates, de que a virtude possa ser ensinada. Protágoras pretende que a virtude possa ser ensinada (Aristóteles também crê). Toda a ética de Sócrates e Platão, exceção na Antiguidade, não promete nenhuma recompensa de felicidade neste mundo. Protágoras diz que pode ensinar virtude e a arte da disputa mediante pagamento, e acredita que já tenha feito isso com muito jovens em sua longa carreira. O sofista julga que 233a pode transformar qualquer um em mestre em todos os assuntos, porque quem ama as disputas vai ter que falar sobre tudo. Ele promete que, quem estudar com ele, vai estar preparado para “debater” e “refutar” os adversários posteriormente.
A Paideia (educação) proposta por Platão é totalmente contrária a preparação dos estudantes para disputar e polemizar no mundo exterior à Academia. Mesmo quem possui virtude não pode ensiná-la, pior ainda é quem não a tem pretender que possa fazê-lo. A educação platônica, tão bem exposta por Werner Jaeger em sua obra monumental sobre a educação grega, busca muito mais desenvolver a autonomia do aluno. A educação é uma espécie de conversão, como esta passagem a seguir esclarece:
Entretanto, o que mais me interessa na similaridade da caverna são suas implicações educacionais, que são expostas por Sócrates em 518-c. Se isto é verdade, ele diz, então a educação (paideia) não é realmente o que algumas pessoas proclamam ser em suas profissões. O que elas dizem é que podem colocar o conhecimento verdadeiro (epistêmê) em uma alma que não o possui, como se eles estivessem colocando visão em olhos cegos. Em contraste, Sócrates insiste (518c) que o presente argumento indica que a verdadeira analogia para esta morada do poder da alma, e o instrumento pelo qual cada um de nós apreende (katamanthanei), é que um olho só pode ser convertido (strephein) das trevas para luz pelo giro completo do corpo. Ainda assim, este órgão do conhecimento deve ser girado do mundo do vir-a-ser, junto com toda sua alma, como no periacto nas mudanças de cena do teatro, até que a alma esteja preparada para suportar a contemplação da essência (τὸ ὄν) e o mais brilhante reino do ser (τοῦ ὄντος τὸ φανότατον), e é isto o que denominamos o BEM.
John J. Cleary, Studies on Plato, Aristotle and Proclus. P.85 (tradução nossa a partir do original em inglês)
Sócrates, como professor, atua como uma parteira de quem está grávido na alma, sendo que ele apenas auxilia que esta alma dê à luz (Teeteto 150c-d). O professor, na paideia platônica, deve despertar no aluno o conhecimento que já está latente em sua alma, e nunca meramente depositar informações na mente do aluno.
Ora, o reino do sofista, como de todo charlatão e amante de disputas, é o do não-ser. Ao admitir que o não-ser é, Platão afirma estar cometendo um parricídio, pois está “matando” seu pai espiritual, Parmênides 241d. Quando Platão reconhece a existência do não-ser, um grande avanço ocorre em sua filosofia. Ele descobre a morada do sofista. Ali, o que existe é um mundo de aparências 236e, o reino da falsidade. Platão diz que, sem declarar que o não-ser existe e, assim, matar Parmênides, a falsidade não poderia existir. Quando descobrimos o esconderijo do sofista, mais fácil fica de o capturarmos.
Platão admite que capturar o sofista, apesar de tudo, ainda é muito complicado. O sofista é um criador de ídolos, aparências de verdade que ele espalha pelo caminho e numa disputa, o que é capaz de confundir mesmo um filósofo 239d. Ele também é um mestre em distorcer as palavras e dar a elas novos significados. Neste sentido, parodiando Tales, para quem o mundo estava cheio de Deuses, podemos afirmar que o Brasil está cheio de ídolos. O sintoma claro dessa nossa idolatria está na profusão de palavras distorcidas que surgiram nos últimos anos, na linguagem inflada, violenta e de confronto que é a regra atual.
Não deixa de ser surpreendente de fazermos um paralelo sobre o que Jung disse a respeito da Alemanha e o nosso tempo. Em seu livro A Natureza da Psique, Jung viu na linguagem extremamente empolada de Hegel, e em toda a pretensão de sua filosofia, uma irrupção do inconsciente. É como se Hegel tivesse despejado todo o abismo de sua consciência nas linhas de um livro e sobre o povo alemão. Poucos perceberam que o mesmo aconteceu nos últimos anos aqui no Brasil a partir de “pensadores” desqualificados. Criar uma nova língua filosófica, como fizeram Hegel e Heidegger, apesar de que suas filosofias possuem mérito, sem dúvida, é, para Jung é uma “maneira de passar insignificâncias por sabedoria profunda”, e “sintoma de fraqueza.” Jung via na linguagem peculiar de Hegel semelhanças com a linguagem dos esquizofrênicos, pois estes criam “palavras de poder” para conferir à “banalidade o encanto da novidade”, e “submeter o transcendente a uma forma objetiva.”
Um aspecto de enorme importância que vemos no diálogo Sofista, que deve ser entendido tanto pelo filósofo quanto por quem faz ciência, é que, como está em 245d, não se pode falar em ser ou em vir-a-ser sem que tenhamos a visão do todo. Por isso Platão definia o filósofo com aquele que vê o todo. Não se pode falar em perfeição, bem e mal, evolução, progresso, por exemplo, sem que a totalidade esteja definida. Progresso no quê, evolução por quê?, assim podemos pegar o sofista por apegar-se a uma parte da realidade.
Como é usual nos diálogos de Platão, a dialética ascende em hipóteses cada vez mais elevadas. Cabe agora ao filósofo definir o que é ser, pois o objetivo supremo da educação é a nossa conversão para o reino do ser. Uma definição de ser por parte de Platão é a de que ele é potência 247e, pois tudo aquilo que pode causar mudança ou, ele mesmo sofrer mudança, é. Platão ensina que o filósofo deve recusar a seguir tanto Parmênides (imobilidade do ser) quanto Heráclito (vir-a-ser permanente). Como foi dito acima, fora deste reino do ser não podemos dizer nem que ele é, nem que está num perpétuo vir-a-ser. O verdadeiro filósofo, segundo Platão, tem este reino na mais alta estima, e não procura fazer afirmações vazias para chegar, após algum tempo, a doutrinas dogmáticas 249c.
Uma análise sobre o conhecimento feita no Teeteto 151e procura definir se o conhecimento é percepção sensível. O sofista, que a todo momento discursa sobre uma infinidade de coisas, ora que algumas são, e outras vezes que estão num vir-a-ser, tem apenas uma percepção momentânea sobre as coisas, por isso seu discurso á apenas aparentemente sábio. Ele está embevecido em sua própria oratória criadora de ídolos que o protegem. Aqui (Teeteto152a), Platão rejeita o famoso aforismo de Protágoras que “o homem é a medida de todas as coisas”, pois aqui é o domínio da percepção sensível. Da mesma maneira, Aristóteles vai descartar a Ideia do Bem de Platão para dizer que o bem é diferente para cada um e, como um filisteu, afirmar que as Ideias não são úteis no cotidiano.
Platão (Teeteto 152d) também faz uma observação esclarecedora sobre nossa busca pela definição do ser. Sem esta “base”, se tudo muda e flui, nada pode ser dito que é grande ou pequeno, que é quente ou frio, está em cima ou embaixo, etc. Recusado o ser, o mundo tornar-se-ia um fluxo infernal de dados dos sentidos contraditório, e nenhuma ciência seria possível no plano físico.
Nossa tentativa de definir o que é o ser, que é a base para qualquer ciência ou educação, nos provoca espanto. A filosofia nasce da perplexidade (Teeteto 155d). Por mais que Aristóteles também tenha dito isso, fica difícil verificar a perplexidade em sua filosofia sistemática, a não ser em seus diálogos iniciais. Nos filósofos medievais, com exceção de João Escoto Erígena e Nicolau de Cusa, a verdade já está colocada. Se o nosso mundo é melhor dos possíveis, como para Leibniz, não é possível filosofar, só agradecer e contemplar. Não é possível considerar que algum dia Hegel ficou perplexo. E Platão afirma quer toda a filosofia nasce da perplexidade.
No processo de ascensão da dialética, Platão afirma que descobriu o que é o filósofo (Sofista 253c). Isso explica por que não há um diálogo denominado Filósofo. Cabe ressaltar que a problemática que Platão trata aqui será melhor esclarecida em seu desafiador diálogo Parmênides. O filósofo não se guia pela aparição, porque o perceber não é conhecer (Teeteto 158 a) pois, ao contrário do sofista, que está sempre preso do que parece ser e do que vem-a-ser, o filósofo não cai na armadilha da mistura e conhece diretamente a Ideia (Teeteto 253d), superando a dificuldade da unidade na multiplicidade.
Platão reconheceu a contradição que implica o não-ser, fonte da mentira, superando Parmênides. O não-ser é o reino das aparências, do sofista, que é sempre um empirista, ou seja, ele é prático e obcecado pela experiência (Sofista 254 a). O sofista é um ser que vive nas trevas da experiência sensível, e nunca ascende ao reino da luz, que é o mundo das Ideias. A experiência sensível, diz Platão, é algo que o ser humano compartilha com os outros animais e, se conhecimento fosse percepção, não haveria necessidade de educação(Teeteto 186c). Nosso filósofo, e isto é importante até para o desenvolvimento posterior da teologia cristã, reconhece o direito de existência do não-ser (Sofista 258b), e declara que ele não é o oposto do ser, mas apenas diferente do mesmo. No neoplatonismo há toda uma definição de que o mal não tem o direito a existência, porque é apenas uma ausência de bem.
Uma das grandes desgraças que temos que suportar pela boca dos sofistas de todos os tempos é aquilo que Platão denuncia no Sofista 259e. Como tem seu discurso reverberado entre seus pares, ignorantes do mesmo quilate, promovem a separação de partes do todo em seu discurso, o que gera uma anticiência, ou uma babel diabólica. O filósofo, pelo contrário, vai fazer em seu discurso o “entrelaçamento recíproco das Formas”.
Toda esta árdua tarefa, apesar de todo o seu esplendor, provoca ainda a incompreensão da maioria das pessoas sobre a importância do filósofo. Ele sofre escárnio geral, anda com a mente e os olhos fixados nas estrelas, por isso, como Tales, caem em um buraco, para o divertimento de quem vê. Todas as riquezas e os fatos ordinários do mundo, valorizados pelas outras pessoas, lhes são estranhos. Como, apesar de todo seu esforço para compreender o universo, isso sempre estará fora de alcance, e que sempre haverá algo oposto ao Bem, Platão (Teeteto 176b) afirma que o filósofo deve tentar escapar o mais rápido deste mundo, e tornar-se semelhante à Divindade.
A Definição do Político
Um dos grandes momentos da filosofia de Platão é a busca por uma definição do sofista, do político e do filósofo. Platão jamais escreveu um diálogo chamado de Filósofo, isso porque a definição de filósofo está já contida dentro do diálogo Sofista. No Político, o grande filósofo ateniense deseja ter um entendimento a quem caberia a arte de governar, o que permite uma articulação com seu diálogo A República.
É de extrema importância que compreendamos a maneira pelo qual Platão desenvolve seu pensamento em forma de diálogo. Ele não parte do senso comum ou de uma reunião de “dados dos sentidos” para explicar sua teoria. No Político, assim como nos outros diálogos, notamos que seu pensamento vai em uma escala ascendente, colocando hipóteses cada vez mais elevadas até atingir seu objetivo.
Um exemplo do que foi dito acima é a rejeição inicial ao recurso do Mito, da maneira como está a partir de 270d. O Mito ensinado por Platão é muito parecido com o do Gênesis. No reinado de Cronos, tudo era o inverso do que é hoje. Os velhos rejuvenesciam, os jovens voltavam a ser bebês, e os mortos ressuscitavam a partir da terra. Animais e seres humanos viviam em harmonia e conversavam entre si. Não havia casamentos nem a necessidade de reprodução, pois os seres humanos nasciam da terra. Os dáimons (no sentido positivo original do pensamento grego) cuidavam da humanidade. Mas Platão diz que não podemos especular sobre o quê os humanos e os animais conversavam. Terminado este tempo, pois todos os seres já haviam renascido em todas as possibilidades possíveis, o Timoneiro do universo abandonou seu posto 272e, e assim o universo começou a girar em um sentido contrário, e o mundo tomou a forma como é hoje, com a reprodução, o nascimento, a juventude e a morte. Homens e animais tornaram-se inimigos. Só que havia a possibilidade deste giro causar uma desordem, que é inerente à matéria, de tal magnitude, que o universo estaria ameaçado. O Timoneiro, então, recuperou a tempo o comando do universo e o tornou imune à velhice. O importante, para captarmos o espírito platônico, é que o mundo que temos é o atual, e não há o recurso de escaparmos para o mito do paraíso original que perdemos. O objetivo é a definição do político, que há de agir como o timoneiro entre cada nação, e que colocará ordem no meio das inúmeras desordens que existem nas diversas sociedades. Platão reconhece em 277c que o Mito tem um efeito didático para a massa da população que não é passível de compreensão das coisas mais elevadas, pois vivem como num sono permanente e, quando despertas, esquecem de tudo. O discurso e o diálogo, que são muito mais importantes do que a escrita, em Platão, são o domínio das pessoas com maior capacidade, ou seja, que estão despertas.
A partir da incapacidade do Mito da Idade de Cronos de nos proporcionar o caminho correto da definição do político, Platão também ensina outra maneira de como não proceder. Em 262d, Platão demonstra que uma separação simplória entre o que é adequado aos gregos, e ao restante da humanidade (bárbaros), não é a maneira certa de proceder. O correto seria pensar em termos de par e ímpar, homem e mulher, para, a partir disso, especular sobre os diferentes povos. Em 278b, Platão já rejeita por inteiro o futuro projeto de Aristóteles que, em sua Política, usa o modelo de comparação entre dezenas de Constituições para tentar chegar a um modelo adequado. Não chegamos a um conhecimento verdadeiro daquilo que buscamos só a partir de comparações entre o que é certo e o que está errado. Infelizmente, este método de confrontação entre o Bem e o Mal está muito em voga nos dias atuais. Como afirma Platão em 278d, a vida é muito mais complexa para que a verdade seja alcançada apenas a partir de meros confrontos entre contrários. O método científico de Aristóteles, que é o de recolher “dados dos sentidos” e depois compará-los, é algo inconcebível para Platão. Em 285d a diferença entre os dois é bastante evidente. Não partimos para definir as coisas mais elevadas, como é o caso da busca para sabermos quem é o verdadeiro Político, a partir de exemplos já fornecidos sobre os diferentes políticos, ou sobre constituições diferentes, da mesma maneira, como Platão apresenta, que nenhum aluno não aprende as letras por interesse de uma palavra específica, mas sim para que ele possa compreender todo o restante.
O salto que Platão quer que façamos exige que abandonemos o comportamento infantil de apenas apontar semelhanças entre coisas sensíveis. Aqui entra a verdadeira ciência platônica, que é o direcionamento da alma para planos cada vez mais elevados de hipóteses incorpóreas, que só podem ser alcançadas no plano do discurso, da dialética 286e. Este é o ponto mais atacado em Platão por vários de seus adversários ao longo da história, porque veem nas suas hipóteses meras utopias. Sua crítica à democracia é bem conhecida especialmente na República. No Político, ela também está presente. Claro que suas observações, muito valiosas por sinal, estão sujeitas às críticas, mas seria interessante que analisássemos algumas delas, quando aplicadas ao tempo presente.
Platão acredita que a democracia seja a pior das melhores formas de governo 303b; porém, ele afirma que, em uma situação degenerada, a democracia seja a melhor forma de governo- ou a menos nociva. O filósofo quer saber em 292c se muitos ou poucos terão o conhecimento sobre a arte de governar. Aristóteles critica Platão em sua Política por sua busca de um Rei-Filósofo. Como vimos acima, Aristóteles tende a “pulverizar” o conhecimento em muitas unidades reunidas, neste sentido, ele só poderia mesmo criticar Platão por estabelecer hipóteses mais elevadas e, portanto, julga que não os melhores, mas todos podem governar (Política X). Não há uma noção de uma Ideia do Bem em Aristóteles, pois diferentes bens estão espalhados em vários lugares. Outro salto que Platão dá é em 293b, porque ele saltou por cima das leis. O político possuirá a ciência verdadeira dentro de si. Ele dá o exemplo da medicina, pois os médicos, independente das leis, ou de sua condição pessoal e, se age de uma ou outra maneira, é sempre um médico. Platão coloca um argumento polêmico em 293e sobre o poder do político de governar com uma ciência que esteja acima das leis, podendo matar ou banir alguns dos cidadãos, estabelecer colônias ou convocar cidadãos de outros países para fortalecer a própria. O argumento deixa de ser polêmico quando vemos que, as duas grandes potências mundiais até hoje, o Reino Unido e os Estados Unidos, usaram e abusaram destas prerrogativas.
Há de se supor que, a partir da leitura de 297e, se a arte da política é superior às leis, então o pensamento filosófico deveria ser dominante, mais do que um judiciário com seu enorme aparato de leis e regras. E a ciência do governante, como o comandante de um navio, deveria ser o ponto de equilíbrio, mais do que as leis escritas, ainda mais em um momento de perigo. Da mesma maneira que no Mito de Cronos, as coisas deixadas por si próprias estão sujeitas a movimentos desordenados e, se não fosse pelo Timoneiro assumir novamente o comando, o resultado seria imprevisível. Uma vez que há uma enorme variedade de inclinações entre a massa da população, como as leis, por melhores que fossem, seriam capazes de colocar uma barreira a um avanço caótico da desordem? Platão alerta em 307e que mesmo a presença dos bons não é suficiente para garantir a ordem permanentemente, e o caso é mais claro ainda em uma democracia, porque a tranquilidade tende a nos tornar indolentes, enquanto que as forças da desordem estão em mobilização constante. Nós sabemos que, em nossos dias, muito se tem falado sobre como a internet democraticamente deu voz aos idiotas e aos criminosos; no entanto, é raro aparecer alguma voz para apontar que a democracia faz o mesmo. É muito mais fácil trollar em redes sociais do que construir algo de bom; na democracia, a tendência é que os piores criem grupos organizados e conspirem, enquanto os bons e os melhores permaneçam distraídos. Construir leva muito mais tempo de que destruir. Como escreve Eric Voegelin:
Na situação concreta, o Estado de Direito não é uma instituição para ser esclarecida e armazenada como item permanente no conhecimento dos alunos, mas para ser questionada como uma fonte de desordem e como um obstáculo à restauração da ordem. Quando a desintegração espiritual e moral de um governo constitucional atinge a fase de destruição iminente, é o momento de medidas de emergência que se sobreponham a todas as formas constitucionais. Platão entendia que a natureza e a seriedade da crise exigiam um governo de homens extraconstitucional; essa percepção faz dele um filósofo da política e da história superior a Aristóteles, que, com uma complacência às vezes inconcebível, pôde descrever a natureza e a ordem da pólis helênica e oferecer receitas argutas para lidar com perturbações revolucionárias num momento em que o mundo da pólis vinha desmoronando à sua volta e em que Alexandre estava inaugurando a época do Império. (Ordem e História: Platão e Aristóteles. Editora Loyola,p.220)
Ainda vemos no Brasil como a interpretação das leis é bastante elástica, sobrepondo-se até mesmo ao interesse da população. Não pode fazer obra tal porque a lei diz que determinada espécie vive ali, logo a população pobre que vive naquela região, e que seria beneficiada, que se lasque. Mesmo crimes, como a deposição de um presidente, são tornados válidos porque seguiram a “lei”. No livro Homo Sacer, de Giorgio Agamben, há uma passagem muito interessante. Ali vemos que as civilizações mais conscientes sabem muito bem até onde vai a “lei”. Nos Estados Unidos, Agamben percebeu, o presidente é uma figura separada do restante da população. Ele até pode sofrer impeachment, mas o processo contra ele termina no momento de sua saída. Ele não responde, depois disso, a processos normais. Mas aqui seria bem difícil termos a consciência sobre o porquê os outros povos fazem assim…
A Ideia do Bem e da Paideia no Pensamento de Platão
Felipe Pimenta
http://felipepimenta.com/2014/03/26/a-ideia-do-bem-e-da-paideia-no-pensamento-de-platao/
Resumo
A filosofia de Platão é a mais bela e completa que existe. O presente trabalho demonstrará que desde a criação de um universo como cópia da Ideia, passando por um mundo material que foi criado por um ato de bondade do Bem, até chegarmos ao filósofo que fará o papel de intermediário na comunicação desta obra de perfeição do universo aos homens que ainda estão presos na caverna, a filosofia platônica une a ideia do Bem à educação. O Bem está no centro do ensinamento da Paideia de Platão. Sua filosofia é uma inversão do princípio dos Sofistas para quem o homem era a medida de todas as coisas. Platão fará sua filosofia criar uma teologia verdadeira para o homem. Nela Deus é a medida de todas as coisas. O desejo de criar um homem que contemple a ordem da criação e através da educação passe a ter domínio de si mesmo representa todo o esforço e a beleza da filosofia platônica.
Palavras-chave: Platão. Sócrates. Werner Jaeger. Eric Voegelin. Giovanni Reale.Proclo.Paideia. Timeu.
Abstract
The philosophy of Plato is the most complete and beautiful that exists. This present work will demonstrate that since the Creation of the Universe as an image of the Idea, passing through a material world that was created as an act of indulgence by The Good, until we come to the philosopher that will make the role as the intermediate in the communication of this work of perfection of the universe to the men that are tied at the cave, Plato’s philosophy unite the idea of the Good with the education of men . The Good is in the core of the teaching of Plato’s Paideia. His philosophy is an inversion of the principles of the Sophists for who the man was the measure of all things. Plato will make his philosophy create a true theology for man. On his theology, God is the measure of all things. The desire to create a man that contemplates the order of the universe and trough education pass to have control of oneself represents all the effort and the beauty of Plato’s philosophy.
Keywords: Plato. Socrates. Werner Jaeger. Giovanni Reale. Eric Voegelin. Proclus. Paideia. Timaeus.
Introdução
A filosofia de Platão possui dois temas que estão unidos: a noção de Bem e a Paideia. No pensamento platônico, conforme narrado em A República no mito da caverna, o filósofo é como o prisioneiro da caverna que conseguiu libertar-se e contemplou o mundo das Ideias. O Bem contemplado pelo filósofo também é visível no universo criado pelo deus-artífice- o Demiurgo-, que no diálogo Timeu fez um cosmos como cópia da Ideia, tendo com intermediários os Entes matemáticos e, por último, a realidade sensível. A criação é um Bem que o filósofo reconhece, só que esse mundo é um reflexo sem a perfeição do mundo das Ideias. A bondade da criação e a visão do noumenon é o que Platão pretende comunicar aos governantes e à população. Como foi dito acima, o Bem deve ser transmitido aos homens através de uma educação( Paideia) que tenha como objetivo formar uma alma bem ordenada. O tema está contido em alguns dos principais diálogos de Platão, porque esse filósofo sempre teve como missão estudar o mundo do phenomenon e do noumenon, ainda que ele pretenda que tenhamos mais atenção ao último, ele também vê no mundo físico uma ordenação criada por um ato de bondade do Demiurgo.
O filósofo é aquele vai ensinar aos homens o Bem visto no mundo das Ideias, e irá fazer com aqueles que ainda não contemplaram essa realidade passem a fixar, segundo Voegelin (Ordem e História, 2009, pág. 172),
“o olhar de sua alma no bem em si, e devem usá-lo como um paradigma para a ordenação reta da Pólis, dos cidadãos e de si mesmos para o resto de suas vidas.” A escolha deste tema é importante para um melhor entendimento de como a filosofia platônica pretendia fazer a alma e o corpo do homem serem bons como o universo é bom. O Bem e a Paideia precisam ser estudados juntos para que a doutrina de Platão possa ser compreendida com maior profundidade. Como esse é um tema rico em possibilidades, um trabalho desse tipo pode ser de grande ajuda.
“ O pensar é para o Homem o passeio da alma”
Autor desconhecido
O Bem
1.O Bem como o modelo do Demiurgo: O Timeu
Platão criou uma narrativa da criação que explica as causas da natureza, a alma e a forma material. O Bem é anterior a todas as coisas do Universo. Depois vem o Paradigma Inteligível. Junto a ele está o Artífice, chamado por Platão de Demiurgo. Segundo Proclo (1997, pág13),
“Platão antes dessas coisas investiga as causas principais, ou seja, a causa produtora, o paradigma e a causa final.Ele também põe um intelecto demiúrgico sobre o universo, e uma causa inteligível na qual o universo subsiste primariamente, e o Bem, que é estabelecido de maneira anterior à causa produtora na ordem do desejável.”
No diálogo Timeu, Platão elabora um mito a respeito da criação do Universo. Narrado pelo Pitagórico Timeu, o diálogo descreve como o Demiurgo criou o cosmos como uma imagem da Ideia. Timeu abre o seu discurso com estas palavras: “ tudo o que se gera necessariamente é gerado por algo: de fato, é impossível que algo se gere sem ter uma causa.”¹ O texto do Timeu diz assim mais adiante : Na minha opinião, em primeiro lugar é preciso distinguir as seguintes coisas: o que é aquilo que é sempre e não devém e o que é aquilo que devém, sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, pois é imutável. Ao invés, o segundo é objeto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca. Ora , tudo aquilo que devém é inevitável que devenha por alguma causa, pois é impossível que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa. Deste modo, o Demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria. É inevitável que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo. Se, pelo contrário, pusesse os olhos naquilo que devém e tomasse como arquétipo algo deveniente, a sua obra não seria bela.”² É sobre esta estrutura de cópia que se funda a possibilidade de saber algo realmente sobre esse mundo em devir.³ Proclo (1997,pág 283) fala do Demiurgo como um paradigma com essas palavras:
“ Platão, portanto, indicando essas coisas, e através delas afirmando que a posição do paradigma do Universo não está posicionado entre uma multiplicidade de naturezas eternas, mas é a mais eterna de todas elas e primeiramente eterna, chama o mundo o mais belo de fato, mas o Demiurgo o mais excelente.”
Mais adiante, Proclo (1997, pág 286) fala sobre o Paradigma:
“Platão, de fato, demonstrou que o Demiurgo olhou para um Paradigma, e esse sendo o mais excelente, o fez olhar para o mais divino deles, o qual ele disse que o Universo foi fabricado conforme o Inteligível. Mas que o universo é também vencido pela forma e verdadeiramente imita seu Paradigma é manifesto pelo que é dito agora. Porque se o mundo é uma imagem, o universo é assimilado ao Inteligível. Pois o que não é diferente mas similar, é uma imagem. Você tem então o universo sensível, a mais bela das imagens; o universo intelectual, a melhor das causas, e o universo Inteligível, o mais divino dos paradigmas.”
A ordem cósmica que revela-se aos sentidos, só pode ser reproduzida por uma História narrada. Um saber que vá além dessa história estaria em contraste com a nossa natureza humana.4 Passar do não-ser para o ser já é o primeiro ato de bondade de Deus. Esse mesmo Deus não é de forma alguma invejoso, pois quis que todas as coisas se tornassem ao máximo semelhantes a ele.5 O universo é belo, desprovido de toda imperfeição e semelhante ao Artífice. O Demiurgo então criou o corpo do Cosmos juntando elementos como a água, o ar, a terra e o fogo, e unindo estes elementos em uma proporção certa, tornou-o imune à velhice e às doenças. A figura que melhor se adequou a esse corpo foi a esférica, com uma revolução em torno de si mesmo e com rotação circular. Este mundo criado não tinha necessidade de nenhum outro órgão. Na sequência do diálogo, o Demiurgo cria a alma antes do corpo, pois o elemento mais velho não pode estar submetido ao mais novo. O Artífice viu que a sua criação era boa, uma vez que a alma era eterna, tentou adaptá-la ao mundo, porém, viu que era impossível. Fez, então, uma eternidade una e imóvel que é o tempo que progride segundo a lei dos números. Criando os planetas e um Sol que nos ilumina, Deus fez os seres humanos participarem do Número.6
1.2.A criação do mundo sensível.
Platão diz que no início havia elementos de água, ar, fogo e terra, porém sem qualquer equilíbrio. Elas se encontravam sem razão e sem medida. Quando o Demiurgo começou a organizar o universo, esses elementos já tinham forma própria, mas se achavam em uma condição em que era natural que estivessem porque Deus estava ausente. A tarefa do Demiurgo era, portanto, levar tal massa informe da desordem à ordem. Segundo Reale7 “ Deus os produz e os constitui, de modo belo e bom, operando por meio de formas números.” O mundo corporal nasce de uma combinação entre necessidade e de inteligência.8 De acordo com o texto de Reale, Platão criou as seguintes analogias para descrever a matéria:
Necessidade, causa errante, receptáculo que tudo gera, aquilo em que se gera o que se gera, potência que não se esgota ao receber várias coisas que recebe; natureza sempre idêntica a si mesma no seu fundamento; realidade amorfa; realidade participante de modo complexo do inteligível; realidade difícil de compreender, obscura e incompreensível; realidade em si invisível, mas visível nas suas várias manifestações; realidade comparável a uma nutriz, a uma mãe, ao material de impressão, ao ouro plasmável, ao material mole modelável de várias maneiras e a líquido inodoro que recebe os vários odores.9
Segundo Proclo (1997, pág 14), a natureza corpórea é produzida com Formas, e dividida por números divinos; a alma é também produzida pelo Demiurgo e é preenchida com raciocínios harmônicos, e com símbolos divinos e demiúrgicos.”
O corpo também possui dignidade por causa da iluminação da alma. De acordo com Proclo (1997, pág 617),
“a alma subsiste com proporções harmônicas e o Todo da natureza corporal formada está em amizade com ela através da analogia, que é harmoniosamente composta. Nenhum laço pode ser mais belo, divino e perpétuo, pois apesar da alma ter sido gerada antes do corpo, Platão concedeu a este a essência, a harmonia, a figura, a potência e o movimento. O Demiurgo quando colocou o Intelecto na alma e a alma no corpo, criou o Universo.”
1.3.A Terra e seus elementos geométricos
O Demiurgo criou o mundo inspirado pelo modelo ideal eterno. Conforme foi estabelecido por Platão acima, aos elementos que formam o universo, como a água, o fogo, o ar e a terra, ele os associou a elementos geométricos como o tetraedro (fogo), o hexaedro (terra), o octaedro( ar), o dodecaedro ( modelo dos cosmos) e o icosaedro(água).10
Na República, Platão vai fazer o filósofo ensinar ao povo que deve-se estudar primeiro àquelas coisas que estão no alto. A geometria fará parte da Paideia que será ensinada na Pólis. Esta disciplina será ensinada junto com a astronomia e a estereometria. A ciência deve começar estudando o que está no céu. Sócrates diz que a geometria nos faz estudar as coisas celestes. Ela promove a contemplação e faz parte de um programa de estudos que têm como objetivo fazer a alma mirar o Ser e o invisível, sem o qual a educação não faz sentido.
1.4.O Poder do Demiurgo
Segundo esta passagem do Timeu, “o Demiurgo produz o bem ao ordenar o caos dos elementos originais, quando realiza o Bem e o melhor e produz o que é belíssimo.” 11 Platão define isso no diálogo que querer fazer o bem é tornar as coisas ordenadas. Ainda no Timeu, o filósofo grego diz que a ciência e a potência de Deus consiste em misturar os muitos em um. O Deus-Artífice platônico construiu um universo a partir de uma desordem e de sua ação produziu-se o Bem. Em uma passagem do mesmo diálogo, Platão diz que “Deus possui de maneira adequada a ciência e, ao mesmo tempo, a potência para misturar muitas coisas na unidade e de novo dissolvê-las da unidade em muitas coisas. Mas não há nenhum dos homens que saiba fazer nem uma coisa nem outra, nem haverá no futuro.”11 O homem pode contemplar a Criação e tentar, segundo Reale( 2009, pág 530), “imitar nesse mundo imagens da Ideia através da técnica e da arte” . O homem que primeiro vai fazer essa contemplação do Mundo das Ideias e transmiti-las aos outros homens é o filósofo. Isso se dará no diálogo A República.
2.O Filósofo contempla o Bem: A República
Sócrates torna-se a figura central que vai expor a doutrina platônica da contemplação do Bem e da Ideia. Em um determinado momento do diálogo, Glauco, ansioso, pergunta a Sócrates sobre como ele crê que o homem possa conhecer o Bem12. Sócrates, então, esclarece que existem coisas do mundo visível que são múltiplas, enquanto a cada uma delas corresponde uma ideia que é única, que chamamos a sua essência. As primeiras diremos que são visíveis, mas não inteligíveis, e de outra forma diremos que as Ideias são inteligíveis, porém, não visíveis.13
Sócrates então pergunta por que meio vemos aquilo que é visível, e ouve como resposta que é por meio da visão. Ora, o homem percebe os objetos pela visão por causa da luz, e essa luz tem como causa o fato dela ser gerada por um deus do céu. Esse deus é o Sol. Ele é o filho do Bem na ordem da criação platônica. O homem, segundo Damáscio ( apud Proclo, pág 326), ao “aproximar-se do imenso princípio deve contemplá-lo em um silêncio místico.”
O diálogo prossegue. Sócrates explica que quando nossos olhos são iluminados pela luz do Sol, nossa alma passa a ser iluminada pela verdade do Ser ela compreende e conhece. Entretanto, se ela se fixa em objetos na qual se misturam as trevas da noite, ela passa a ter meras opiniões sobre aquilo que nasce e morre.14 A visão e a luz não podem ser igualadas ao Sol, da mesma forma que a ciência e a verdade ainda que se assemelhem ao bem, elas não são o Bem em si mesmo. Segundo Eric Voegelin (2009, pág 173),“essas são as proposições referentes ao sol que servem como analogon para tornar inteligível o papel do Agathon no domínio noético (noetos topos).”Prossegue Voegelin dizendo que “ o Agathon não é nem intelecto (nous), nem seu objeto (nooumenon), mas aquilo que dá aos objetos do conhecimento a sua verdade e ao conhecedor o poder de conhecer.”
No Timeu, Platão já havia falado sobre a visão com essas palavras:
“em meu entender, a visão foi gerada como causa de maior utilidade para nós, visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o fato de vermos o dia e a noite, os meses, os circuitos dos anos, os equinócios e os solstícios que deu origem aos números que nos proporcionaram a noção de tempo e a investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses. Por que razão havemos de celebrar os outros que são inferiores a estes, pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse cego, com lamentos em vão?”15
Começa agora o Mito da Caverna. Sócrates quer que imaginemos um grupo de prisioneiros algemados pelas pernas e pescoço.Eles só podem olhar para a parede da caverna e nunca para a sua entrada. Na parede da caverna são refletidas imagens de homens e animais. Essas não passam de sombras de objetos reais de fora da caverna, mas aqueles prisioneiros não sabem disto. Imaginemos então que um dos prisioneiros conseguisse sair da caverna. A primeira coisa que lhe aconteceria é que seus olhos não estariam acostumados à luz do sol. O que ele teria que fazer seria primeiro olhar para as sombras dos objetos, depois para os homens e animais e, por último, para as estrelas e a lua no céu. Depois que ele conseguisse fazer isto, a contemplação do Sol seria possível.16
2.1.O Filósofo desce à caverna
Após ter contemplado o Mundo das Ideias, o prisioneiro que se libertou ( que é a imagem do filósofo), tem vontade de ficar fora da caverna para sempre, já que a realidade da mesma não mais o atrai. Porém, este homem deve descer novamente à caverna e ensinar aos que ainda não contemplaram a verdade o que ele viu. Não é uma tarefa simples, pois envolve o risco dele ser mal interpretado. Mas ele tem que começar a ensinar aos seus companheiros o seu programa da Paideia. A caverna é uma imagem da Pólis, e esta na concepção de Platão “tem o direito de exigir o sacrifício do filósofo porque ela lhe proporcionou educação que deve habilitá-los a unir a Pólis.”17 O filósofo viu o Agathon, e a “Pólis sob seu comando será governada com uma mente desperta (hypar) em vez de ser conduzida, como a maioria das Pólis de hoje, obscuramente como num sonho (onar).”18
3.O Eros como o amor pelo Bem: O Banquete
Este divertido diálogo tem como o tema principal uma discussão sobre o Eros. Vários são os participantes do banquete, mas o que nos interessa é o discurso do Sócrates. Vamos a ele. Sócrates define primeiramente Eros como o desejo indefinido daquilo que nos falta. Sócrates faz o outro participante do diálogo, Agaton, lembrar-se do que havia dito em seu discurso de que Eros é carente do belo.19 Questionado por Sócrates, Agaton confirma que Eros é carente do belo e que o belo é o bem. Neste momento do diálogo, Sócrates interrompe a conversa com Agaton para relembrar-se de um diálogo que teve com a sacerdotisa Diotima. Essa lhe fez perguntas na ocasião sobre Eros, e Sócrates a responde que Eros era belo e que pendia ao bem. Diotima diz, contrariamente a Sócrates, que Eros não é belo nem bom. Ora, o não-belo não quer dizer que Eros é feio, esclarece Diotima.20 Mais adiante, Diotima faz Sócrates reconhecer que Eros deseja o bem e o belo, que são coisas que lhe faltam. Eros está entre o mortal e o imortal. Ele é um daimon, que é um intérprete e mensageiro. Ele leva aos deuses os assuntos humanos e aos humanos ele traz mensagens divinas. Leva preces e sacrifícios e traz respostas aos sacrifícios. Diotima diz que Deus e o homem não se misturam, mas que é através de Eros que este contato é possível. Mais adiante, Diotima conta a mitologia de Eros, que é filho de Penúria e Caminho. Ele é carente de beleza, mas herdou do pai o pendor por coisas belas e boas. Ele ocupa o meio termo entre o saber e a ignorância. Deus não filosofa ,pois já sabe de tudo. Os ignorantes não filosofam nem desejam ser sábios. Os ignorantes não filosofam uma vez que não sentem que lhe falta alguma coisa. Sócrates então questiona Diotima sobre quem filosofa. Ela o responde: quem se encontra no meio entre o saber e a ignorância.21 Eros é um deles. Eros é a posse perpétua do bem. Segundo Jaeger (1995,pág 740), “ o Eros socrático é o anseio de quem se sabe imperfeito por se formar espiritualmente a si próprio, com os olhos sempre fitos na Ideia. É, em rigor, o que Platão entende por filosofia: a aspiração de conseguir modelar dentro do homem o verdadeiro Homem.” Agora surge, por fim, o papel do educador. Para terminar esse capítulo, uma citação de Voegelin faz-se necessária:
“ Apontamos antes que permanece um mistério o modo como o homem, na dimensão temporal do ser (thnetos de Platão), pode experimentar o eterno. Há, então, a necessidade de um mediador que interprete e diga aos deuses o que está acontecendo entre os homens, a aos homens o que está acontecendo entre os deuses. O papel de mediador é atribuído por Platão a um espírito muito poderoso, pois todo o reino do espiritual ( pan to daimonion) jaz entre (metaxo) Deus e o homem. Este espírito (daimon) deve misturar, pela força de sua posição de intermediário, o que não se mistura, à medida que está em confronto objetivo, e os dois polos ele há de fundir num grande todo. O simbolismo discretamente aponta para o cerne da matéria: é o homem que não é simplesmente thnetos, mas experimenta em si mesmo a tensão para o ser divino e, então, está entre o humano e o divino. Quem quer que tenha esta experiência se eleva acima do mortal e se torna um homem espiritual, o daimonios aner.”22
A Paideia
4.A educação como um ato de anamnese: o Menon e o Fédon
Menon pergunta a Sócrates: e de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes exatamente o que é? Pois procurarás propondo-te que tipo de coisa, entre as coisas que não conheces? Ou ainda que, no melhor dos casos, a encontres, como saberás que isso é aquilo que não conhecias?23 Sócrates responde com o argumento de que a alma já renasceu diversas vezes e que quando passou pelo Hades aprendeu muitas coisas, e que quando a alma renasce é possível que ela se lembre daquilo que já viu. Procurar e aprender, para Sócrates, são a mesma coisa, ou seja, uma rememoração.Sócrates, então, propõe demonstrar a sua tese com o auxílio de um escravo de Menon. Com o auxílio da matemática, que faz parte do programa da Paideia, Sócrates faz o escravo traçar desenhos geométricos no chão, e como no papel de professor, ele vai aos poucos trazendo à mente do escravo conceitos que esse último parecia ignorar. Com a sequência do ensinamento, Sócrates leva o escravo à aporia. O Filósofo lembra a Menon sobre a ironia que este fez a ele dizendo que ele parecia com um peixe-elétrico que entorpecia quem se aproximava. O fato do escravo estar entorpecido por experimentar a aporia como faria o peixe-elétrico não quer dizer que tenhamos causado algum dano a ele.24 Logo após este aparente impasse, o escravo “rememora” a solução do problema matemático que Sócrates o propôs. Possuir ciência, para Sócrates, é relembrar-se do que já sabíamos de vidas passadas.
No Fédon, Sócrates ensina que o saber é uma reminiscência. Ele dá um exemplo: a lira traz à mente das pessoas a imagem do amor, dessa maneira quando o apaixonado vê um destes instrumentos, ele se lembra da pessoa amada.25 E isso é uma forma de anamnese. A alma cada vez que renasce esquece temporariamente o que sabia, e é por isso que a Paideia vai fazer o homem instruir-se pelo método da recordação.
5.Paideia sofística ou Paideia socrática?26: Protágoras
Sócrates é surpreendido um dia com o chamado de seu amigo Hipócrates. Esse o avisa que na cidade encontra-se o famoso sofista Protágoras. Sócrates percebe a excitação de seu amigo com o fato, mas tenta fazê-lo se acalmar com algumas perguntas. Entre elas é saber no quê o ensinamento de Protágoras melhora ou transforma a pessoa? Hipócrates o responde dizendo que Protágoras transforma seus alunos em sofistas. Isso não agrada a Sócrates. Hipócrates acrescenta que os sofistas ensinam a seus alunos como tornarem-se excelentes oradores, mas Sócrates o faz ver que tornar-se orador para defender algo indefinido não será de muita utilidade, e o adverte que a aula de Protágoras pode colocar sua alma em risco27. Os sofistas não são pessoas em que se possa confiar.
É a vez de Protágoras apresentar-se e expor sua doutrina. Ele vê os sofistas como pessoas que vestem a roupagem da poesia, da música e do atletismo. Estas atividades faziam parte da Paideia dos sofistas e isso lhes causava grande orgulho. O objetivo do sofista é tornar a pessoa melhor, diz Protágoras. Enquanto outros sofistas ensinam aos seus alunos a arte do quadrivium, Protágoras se preocupa mais com aulas sobre política e assuntos do Estado.
Sócrates por sua vez acha impossível que Protágoras possa ensinar a arte da política a alguém porque os assuntos de Estado podem ser dominados por pessoas de qualquer profissão, e ele prossegue dizendo que é muito difícil que o talento político do pai possa ser transmitido ao filho, e dá como exemplos os filhos de Péricles presentes no diálogo. Protágoras responde à observação de Sócrates com um mito. No início, quando os deuses criaram a raça humana, dois Titãs, Prometeu e Epimeteu ficaram responsáveis por distribuírem habilidades aos humanos. Epimeteu ficou com esta responsabilidade e dotou humanos e animais com algumas características. Porém, o estado do ser humano foi considerado lamentável por parte de Prometeu. Em um gesto desesperado, ele roubou o fogo divino aos deuses e o deu aos seres humanos. No entanto a arte política era desconhecida do homem. Prometeu, então, roubou o fogo de Hefaístos e a arte de Atena e novamente deu aos humanos. Nasceu, assim, a religião. O homem, mesmo assim, continuou a viver em grupos espalhados sendo destruídos por animais selvagens. Faltava-lhes a arte da política. Zeus então enviou Hermes para distribuir justiça a todos sem exceção. Todo o ser humano compartilha deste quinhão da Justiça, caso contrário não seriam humanos.28
Protágoras insiste no valor da educação e na possibilidade do ensino da virtude dando como exemplo o fato dos pais preocuparem-se tanto com a educação dos filhos, inclusive pagando a professores para essa tarefa. Ele questiona o porquê de Sócrates se espantar com tudo isto. Sócrates, por sua vez, apenas direciona o diálogo para o problema do saber e do conhecimento. Ele se preocupa com o fato de muitos possuírem o saber mas acabarem sendo arrastados e vencidos pelo prazer. A Paideia socrática acredita que um homem com um conhecimento verdadeiro sobre o mal jamais agirá injustamente. Protágoras concorda com a opinião de Sócrates de que a sabedoria e o conhecimento são as coisas mais poderosas. Sócrates o faz ver que mesmo que isso seja algo que a maioria concorda, isso não faz necessariamente com que vivam desta maneira. A pessoa que recusa o bem é aquela que escolhe o mal maior em detrimento do bem menor.29 Ser vencido pelo prazer é uma ignorância, e só age dessa forma quem não tem o conhecimento. Ninguém busca voluntariamente o mal. A Paideia socrática pretende fazer do conhecimento do verdadeiro e do Bem uma maneira de evitar a ignorância de uma vida vivida pela busca de prazeres.
6.A Paideia como formação do verdadeiro político: Górgias
No Górgias uma batalha é travada entre dois políticos com formações diferentes: Sócrates e Cálicles. O começo do diálogo é um confronto dialético entre Sócrates e dois sofistas, Górgias e Polo. Sócrates consegue vencer os dois com relativa facilidade. Presente na cena está o experiente político Cálicles, que logo pergunta a Querofonte se Sócrates não está brincando.30 Ele percebe que o que Sócrates ensina pode virar o mundo de cabeça para baixo. Sócrates o responde dizendo que ele e Cálicles estão apaixonados por duas coisas diferentes: ele pela filosofia, e Cálicles pelo povo.31 A fúria de Cálicles deve-se ao fato de Sócrates ter dito anteriormente que cometer injustiça é pior do que sofrê-la. Para Cálicles, nenhum homem desejaria sofrer injustiça a não ser um escravo. Como uma espécie de Nietzsche avant la lettre, ele julga que este tipo de convenção foi feita pelos fracos para dominarem os mais fortes. A lei da natureza é implacável e supõe o domínio dos mais fortes sobre os mais fracos. O homem forte rompe com os grilhões da lei e da moral. Cálicles julga que Sócrates está com o espírito amolecido por causa da filosofia, pois essa é tida por ele como sendo adequada apenas à juventude, e nunca ao homem amadurecido.32
Segundo Jaeger(1995, pág 668),
“este esboço de uma doutrina da sociedade baseada na teoria da luta pela sobrevivência deixa à educação um papel inferior. Sócrates opunha a filosofia da educação à filosofia da força. Era a Paideia que era para ele o critério da felicidade humana, contida na kalokagathia do justo”
Cálicles possui uma alma tirânica e faz uma espécie de advertência a Sócrates. Se Sócrates fosse acusado injustamente por causa de seus ensinamentos filosóficos, mesmo que o acusador fosse um patife, Sócrates só conseguiria balbuciar palavras desconexas em sua defesa, e se fosse condenado à morte, teria necessariamente que morrer. Cálicles crê que Sócrates seria um daqueles que poderia levar uma bofetada impunemente.
Sócrates mantém a calma e faz uma pergunta ao político Cálicles: é a mesma pessoa que ele chama de melhor e superior? É o múltiplo superior ao Uno? Cálicles responde que sim. Ele acredita que o superior deve ter a cota maior, mas não de coisas como alimentos, bebidas e sapatos como Sócrates ironicamente disse, mas sim do poder político. Mas e o problema do governo de si mesmo, questiona Sócrates. Os melhores teriam mais do que si mesmos. Cálicles explode. Nas palavras de Voegelin (Ordem e História, 2009,pág 96),”um homem não deve governar a si próprio. Ao contrário, o bem e a justiça consistem na satisfação dos desejos. Luxo, licenciosidade e liberdade ( tryphe, akolasia, eleutheria), se tiverem meios para se manter, são virtude e felicidade.”
Desta Paideia distorcida pelo político Cálicles, Sócrates irá propor a sua antítese, que é a Paideia que tem junto a ela a noção de Bem. A satisfação de nossos desejos só é permitida quando algo nos falta quando estamos com saúde33. Quando estamos doentes nunca podemos satisfazer nossos desejos das coisas.. A mesma regra, diz Sócrates, aplica-se à alma. Quando ela não possui inteligência, é indisciplinada, injusta e ímpia, torna-se necessário que refreemos seus instintos para que ela melhore.34 Porque o mal que está na ação procede do falso que está no conhecimento, como diz Proclo (1997, pág 926).Cálicles não quer ser disciplinado pela Paideia.O prazeroso e o Bem não andam juntos, conforme Sócrates explica, e Cálicles vê-se obrigado a concordar. O verdadeiro político educado pela Paideia respeitará a Deus e aos homens. Essa educação que o político ensinará ao povo produzirá homens melhores.
7.O Programa da Paideia: A República e As Leis
Em A República, Platão através de Sócrates vai definir a Paideia de seu Estado ideal. Sabemos que a poesia era muito valorizada pelos Sofistas, principalmente Homero. É a partir de uma noção de uma verdadeira teologia que Platão fará sua crítica da poesia de seu tempo. Homero será criticado por suas descrições “caluniosas” do Hades.35 Palavras como as que os poetas usam para descrever este local podem ser bonitas, mas não devem ser ouvidas por homens livres. Nomes terríveis que designam o além-túmulo, além de reproduções de gemidos e lamentos devem ser eliminados.36 Da mesma forma, o riso de homens e deuses não podem ser reproduzidos. Platão, cujo pensamento coincide com os dramaturgos Ésquilo e Sófocles, quer que seja ensinada através da poesia a bondade dos deuses. Ele reprova Homero por atribuir diversos vícios aos deuses. É impossível que o mal venha deles.37 Uma crítica também será feita à imitação. No Estado ideal de Platão, aqueles que forem os guardiões devem se ocupar de garantir a liberdade do Estado, portanto não devem imitar outra coisa a não ser a coragem, a pureza, a liberdade e etc. Tudo aquilo que é baixo não pode ser imitado. Isto inclui a imitação de escravos, de gemidos, das dores da maternidade, profissões como ferreiros, o relinchar dos cavalos, o murmúrio dos rios, etc.38
As profissões devem ser especializadas, evitando que um profissional exerça mais de uma atividade.39 Platão ensina que a música tem uma importância fundamental na sua Pólis. Todo tipo de música sem harmonia ou que produza uma cidade efeminada são proibidas. A música deve ser harmoniosa para que a criança cresça com uma alma sadia e amando o Bem. O mal seria odiado desde cedo por causa da sua fealdade. 40 A música na Pólis platônica deve reproduzir o som da música das esferas celestes41. A harmonia do céu criado pelo Demiurgo é a inspiração para a criação de sons que unam a música à astronomia. Este é o programa pitagórico. Depois da música, o jovem deve aplicar-se à ginástica, mas a educação musical não deve ser excluída. Alguém que só escutasse música e não exercitasse o corpo ficaria frouxo; aquele que só praticasse exercícios físicos mas não desse atenção à alma ficaria embrutecido. Segundo Jaeger(1995, pág 810)
“ a sinfonia da alma é o resultado de uma combinação acertada de dois elementos: a música e a ginástica. Esta cultura coloca o espírito em tensão e o alimenta de belos pensamentos e conhecimentos afrouxando as rédeas da parte corajosa por meio de exortações contínuas e educando-a pela harmonia e o ritmo.”
A educação das mulheres assemelha-se à dos homens. As mulheres devem estudar música, ginástica e a arte da guerra.42 Platão reconhece que homens e mulheres têm naturezas distintas. A solução que ele oferece para a divisão do trabalho é que cada profissão será destinada a determinado sexo de acordo com as aptidões de cada um dos dois; porém, se ambos os sexos forem competentes naquele ofício, o fato da mulher dar à luz e do homem procriar será indiferente.
Nas Leis, Platão propõe a sua pedagogia para a infância.43 As mães devem desde quando estiverem com seus filhos recém-nascidos, começarem a balançá-los para que se acalmem e adormeçam. Esse balanço produziria na alma da criança um frenesi semelhante ao de Baco. Platão preocupa-se com isto porque ele quer eliminar da alma da criança qualquer noção de medo. Mais tarde, a criança, tanto meninos quanto meninas receberão um treinamento sobre o manejo de armas.44
7.1.A Filosofia supera a Poesia como modelo de educação
No livro X da República, Platão faz um ataque ao modelo de Paideia feita pela poesia, modelo esse que era muito utilizado pela sofística. A principal crítica é feita à arte da mimese dos poetas. Na mente de Platão, o Artífice é aquele que cria as coisas que estão no céu e na terra; aquele que criou os deuses e o Hades e o que existe embaixo da terra. Os objetos criados pelo Artífice foram criados à imagem da Ideia. Ora, o marceneiro em sua profissão também é um Artífice, porque também cria um objeto. Porém, um pintor jamais pode ser chamado de Artífice, porquanto é apenas um imitador da obra do Artífice. O mesmo se dá com o poeta para Platão, que também não passa de um produtor de imitações. Criar é ser paradigmático como o Demiurgo. Imitar é apenas “energizar”. Não é a mesma coisa criar pela existência, e “energizar” pelo conhecimento, diz Proclo (1997,pág 287). Segundo o filósofo de Constantinopla, “a alma produz vida pela existência, mas produz vida artificialmente pelo conhecimento. Criar é obra do Demiurgo, porque a geração é a primavera do Ser.”45
Platão pela boca de Sócrates questiona: qual cidade tornou-se melhor pela poesia de Homero? Era ele um educador de Homens? Não, segundo Platão. Jaeger (1995, pág 982) nos ensina sobre este ponto:
“o repúdio da poesia não significa tanto o seu afastamento violento da vida do homem, como uma delimitação nítida da sua influência espiritual para quantos aderirem às conclusões de Platão. A poesia estraga o espírito dos que a ouvem, se eles não possuírem o remédio do conhecimento da verdade. Isto quer dizer que se deve fazer descer a poesia para um degrau mais baixo. Continuará a ser matéria de gozo artístico, mas não lhe será acessível a dignidade suprema: a de se converter em educadora do homem. O problema de seu valor aborda-se no ponto que necessariamente tinha de ser o decisivo para Platão, o da relação entre a poesia e a realidade, entre a poesia e o verdadeiro Ser.”
A filosofia tornar-se-á a base da educação. O filósofo é aquele que saber tornar os homens melhores e conhece o tema sobre o qual está falando.
8.Deus como a medida de todas as coisas: As Leis
Fazendo um contraponto a Protágoras para quem “o homem era a medida de todas as coisas”, Platão faz de Deus o centro de sua Paideia. Jaeger escreve: (1995,pág 876) “ na República, a ideia do Bem é a norma absoluta que serve de base à noção da filosofia como suprema arte da medida, a qual aparece muito cedo no pensamento platônico e nele se mantém até o final.”
No final do diálogo As Leis, Platão conclui que a astronomia, que é a ciência abençoada, é um meio de contemplação da divindade. Segundo suas palavras :
“ supondo que todas essas coisas são como dissemos, qual a finalidade de aprendê-las? Para dar conta desta questão é preciso nos referirmos ao elemento divino presente no mundo gerado, que consiste da espécie mais excelente e mais divina de coisas visíveis que a Divindade permitiu aos seres humanos observar”. Ele prossegue:“precisamos inclusive, deter um conhecimento apurado da exatidão do tempo, captar como ele cumpre com precisão todos os fenômenos celestes. Se o fizermos, então todos os que creem na verdade de nosso raciocínio segundo o qual a alma é a uma vez mais velha e mais divina que o corpo deverão reconhecer que o adágio tudo está repleto de deuses é cabalmente correto e suficiente e, ademais que nunca somos negligenciados devido ao esquecimento ou incúria dos seres que nos são superiores”.46
9. A Filosofia Platônica e o ensino da beleza do universo através da educação
Platão nos ensina que o universo foi criado pelo Bem, que também criou o princípio material. O Demiurgo é um deus que molda a matéria. No cosmos platônico, o mundo é bom, pois foi moldado pelo Demiurgo com base no Paradigma Inteligível. Na criação do homem, a beleza também está presente. Isso foi muito enfatizado por Proclo, que não deixa de nos recordar isto, mas sempre mantendo-se fiel à concepção do seu mestre Platão de que o corpo não tem a mesma dignidade da alma, o que não quer dizer que haja nele algum elemento de maldade como os gnósticos da era cristã pregavam. O platonismo não é um sistema pessimista como o gnosticismo. É curioso como a filosofia de Platão foi acusada por alguns filósofos cristãos de criar uma noção errônea da matéria. O que vimos foi que a união da alma e do corpo é algo desejada na ordem de sua filosofia, semelhante ao hilemorfismo aristotélico. A coleção de citações sobre como o bem está presente na matéria citadas por Reale acima demonstram como Platão a tinha em grande estima. “A realidade da matéria é invisível ao mesmo tempo em que a vemos em suas várias manifestações”, diz o filósofo grego. Platão é muito científico, porque mesmo a ciência moderna ainda busca a essência da matéria. A concepção da matéria em Platão é muito importante de se ter em mente contra aqueles que quiserem fazer da filosofia de Platão uma antecipação do gnosticismo da era cristã. Depois de haver descrito essa ordem de maneira tão bela, Platão enfatiza que o noumenon deve ser a base do conhecimento para o homem. Platão queria uma ciência não do mundo físico, mas sim do mundo eterno das Ideias. O que primeiro deve ser feito é a libertação do mundo das aparências do mundo físico. O homem sem a contemplação da Ideia é semelhante a um prisioneiro da caverna que só enxerga as sombras. Quem fará a descoberta do mundo das Ideias e as comunicará aos homens que ainda estão presos às aparências é o filósofo. No mito de Eric Voegelin, o filósofo é como o daimonios aner, ou seja, o homem espiritual. É esta a função do filósofo em A República, pois ele é quem faz a intermediação do mundo divino com o mundo dos homens. Este homem espiritual, entretanto, segundo Voegelin, não poderá ser apolítico e viver preso à contemplação da Ideia, pois a cidade precisa dele.
A polis platônica necessita de cidadãos educados, principalmente para o surgimento de governantes com a alma ordenada. Platão, portanto, criou um método de educação que visa a ensinar aos homens o Bem contemplado antes dessa vida, pois seu pensamento exige uma preexistência da alma. Caindo no mundo físico, a alma esquece do que já havia aprendido. Com a Paideia, a alma pode recordar-se do que já sabia através do método da anmenese. Este método é ensinado no diálogo Menon. O método de relembrar-se leva o estudante à aporia, que é um impasse. Cabe ao professor ensinar ao aluno como sair desta situação, e através da resposta, este último encontrará uma solução de que nada mais é do que uma recordação de algo que ele já sabe desde uma vida passada no mito platônico.
A filosofia e a Paideia de Platão são majestosas, pois conseguem unir o espiritual ao mundo físico sem cair nos problemas que Aristóteles enfrentou, pois este tinha muita dificuldade de imaginar uma sobrevivência da alma sem o corpo. Platão quer que os homens através da educação tenham uma alma sadia da mesma forma que o corpo, pois ambos nos recordam da bondade de Deus. O universo é bom, a alma unida ao corpo é algo desejável e a harmonia da ordem divina está presente em tudo o que vemos.
Conclusão
A criação do universo como cópia da Ideia foi algo bom e belo. Platão apresentou-nos uma teologia em que os deuses são bons.No Timeu, Deus é considerado bom (agathos)47, livre de inveja ( Peri oudenos oudepote phthonos)48, melhor das causas(o d`aristos tôn aitiôn)49 e produz o mais belo( to kalliston)50. O homem foi definido como o mais belo dos Inteligíveis.51 Sua Paideia cria um homem que desde criança aprende a experimentar o Bem. O trabalho concluiu que o papel do filósofo como educador é o de transmitir a beleza da Ideia e do Cosmos àqueles que ainda são prisioneiros do mundo dos sentidos. A Paideia começa pela contemplação através do sentido da visão da Ideia eterna. O papel do educador é o de ensinar aos alunos os objetos do intelecto (nooumena) e começar o ensino através do processo da anamnese. O trabalho atingiu o seu objetivo de explicar esta ligação entre o Bem e a Paideia. O filósofo, tal como lemos no diálogo O Banquete, é aquele que está sempre apaixonado e com os olhos sempre mirando na Ideia. Ele deseja que os membros da Pólis tenham em mente o Bem do mundo eterno. A Paideia atinge seu objetivo quando faz do homem, que é imperfeito, um ser que deseja aprimorar-se espiritualmente. Este trabalho representou uma grande realização intelectual para mim. A filosofia de Platão é a mais perfeita que existe e ele é a grande inspiração para que eu possa exercer o papel de filósofo.
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¹ Timeu, 28b
² Ibid
³ Reale, pág 445
4 Ibid
5 Timeu, 29e
6 Timeu, 38d
7 Reale, pág 474
8Timeu, 47e
9 Reale, pág 4
10Timeu, 54a
11 Timeu, 68d
12 República, 506a-e
13República,507a-e
14República,508a-e
15 Timeu, 47b
16 República, 514a-516a-e
17 Ordem e História, pág 176
18 Ibid
19Banquete, 201b
20 Banquete,201e
21Banquete, 204b
22 Anamnese, pág 406
23Menon, 80d
24Menon, 84b
25Fédon, pág 41
26 Jaeger, pág 620
27 Protágoras,313ª
28Protágoras,321b-322d
29Protágoras, 355e
30Górgias, 481b
31 Górgias, 481d
32Górgias, 484d
33Górgias, 505a
34Górgias, 505b
35República, 387a-e
36Ibid
37 República, 391a-e
38República, 395-396a-e
39República, 397a-e
40República, 401a-e
41Timeu, 80a
42República, 452
43 Leis, pág 278
44Leis, pág 283
45Proclo, pág 326
46Leis, pág 537
47 Timeu, pág 38
48Ibid
49Ibid
50Ibid
51 Proclo, pág 654
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Bibliografia
JAEGER, Werner. Paideia: A formação do homem grego. 3. Ed.São Paulo: Martins Fontes,1995.
PLATÃO. O Banquete. Porto Alegre: L&PM, 2011.
Fédon. 3.Ed.São Paulo: Martin Claret,2011.
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As Leis. 1.Ed. São Paulo: Edipro, 1999.
Menon. 1Ed.Rio de Janeiro: Editora Puc Rio, 2001
Protágoras.1.Ed. São Paulo: Edipro, 2013.
A República. São Paulo: Martin Claret, 2003.
Timeu.1Ed. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2011.
PROCLO. The Commentaries of Proclus on the Timaeus of Plato. Kessinger Pub, 1997.
REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. 2.Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
VOEGELIN, Eric. Anamnese. 1.Ed. São Paulo: É Realizações, 2009.
Ordem e História: Platão e Aristóteles.1.Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009.