Resenha: O Nome da Rosa, de Umberto Eco

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O século XIV representou uma época de revoluções no pensamento e na tecnologia. Os óculos, o relógio mecânico e o uso militar mais disseminado da pólvora são daquele período. Na filosofia, após séculos de debates sobre a questão dos Universais, o Nominalismo tornar-se-ia dominante. Muito do destino da ciência moderna foi estabelecido a partir das ideias de Guilherme de Ockham. O romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, é a grande referência literária sobre um século tão catastrófico e inovador.

Uma série de assassinatos acontecem em um remoto mosteiro no norte da Itália. O franciscano inglês Guilherme de Baskerville, acompanhado pelo jovem noviço que o acompanha, Adso de Melk, é enviado para investigar os crimes. Este monastério é a representação da Europa medieval em seu declínio. Dentro dele estão misturadas a ortodoxia e a heresia; a teologia oficial e suas novas derivações.

Frei Guilherme é um nominalista inglês voltado ao conhecimento empírico, discípulo de Guilherme de Ockham e herdeiro de uma tradição que vem de Roger Bacon. Ele é um homem com ideias à frente de seu tempo. Não acredita nas Formas platônicas e nega os Universais. A partir da coleção de fatos individuais faz uma indução de uma teoria provável. Não crê em uma verdade, mas em errar o menos possível. Para os Nominalistas, o Universal não passava de um flatus vocis, um sopro de voz, pois somente o individual concreto era real.

O abade do mosteiro representa, de uma maneira caricatural, sem dúvida, a posição intermediária ensinada pela Igreja Católica e por Tomás de Aquino de que chegamos ao conhecimento de Deus por seus efeitos, pela abstração do sensível. O modo como o abade descreve, embevecido com a própria riqueza, a beleza de suas joias e do tesouro do monastério, como meios para louvar ao Criador, é cômico.

O monge Jorge de Burgos, que é a encarnação do fanatismo católico espanhol, simboliza a cegueira mística. Ele lamenta que Tomás de Aquino tenha adotado o pensamento de Aristóteles e que a teologia, para chegar até Deus, vá criando silogismos a partir do sensível, sem mais a visão grandiosa de um Pseudo-Dionísio. O mundo, segundo Jorge, está dominado pelo Anticristo, e seus caminhos são lentos, e cabe a nós enxergarmos seus passos. Uma inversão dos grandes filósofos da Antiguidade para quem os caminhos dos Deuses é que eram lentos…

Muitas hipóteses são apresentadas por Eco no romance. Alguns monges teriam matado por causa de uma paixão homossexual; as narrativas do livro do Apocalipse podem também serem prováveis; disputas nacionalistas pelo controle da biblioteca do monastério seriam a causa dos assassinatos, por que não? lá dentro está povoado por monges bizarros, que frequentaram grupos heréticos, e os heréticos naturalmente são assassinos, depravados, etc. O mundo e o monastério são labirintos, e como caminhar por eles?

O século XIV foi quando o caráter laico da Europa começou a ganhar força. As cidades cresciam, ameaçando o poder dos monastérios do interior. Quem for ler o romance precisa prestar atenção aos lamentos de alguns dos seus personagens sobre isso. O latim estava perdendo força pelo uso mais disseminado da língua vulgar. Os nacionalismos afloram, mesmo entre os monges. O capitalismo e a burguesia, que aparecem com maior nitidez a partir do século XII produzem efeitos entre o povo e a Igreja. Durante séculos a economia europeia havia estado estagnada. A maior circulação de dinheiro promovida pelas Cruzadas, Templários e por esta burguesia gera ressentimento entre parte de população. Alguns estão enriquecendo, inclusive a Igreja, enquanto a maioria continua pobre. São Francisco de Assis quer renovar a religião pela simplicidade, pela pobreza. Só que a linha de demarcação entre ortodoxia e a heresia é tênue…

Umberto Eco, através de seu personagem Guilherme de Baskerville, acredita em uma separação entre a fé dos simples (camponeses analfabetos e mesmo os laicos com instrução) e do clero. Há um dinamismo crescente nas cidades não compreendida pela Igreja. Muitos abandonam o campo e se perdem lá, uma grande matéria-prima para a heresia, que é dinâmica, móvel e se oculta facilmente.

Graças à filosofia de Aristóteles, que historicamente demonstrou ser bastante útil para o Cristianismo, porque lida em sua maioria com o mundo físico, pouco dizendo sobre Deus e o imaterial, a Igreja o adicionou ao seu arsenal. O silogismo, o princípio da não-contradição, o tertium non datur, tornam-se armas da Inquisição que surge. Os inquisidores e os escolásticos são obcecados por contradições. É a lógica unida a um maniqueísmo teológico.

Esta população das cidades, que Eco defende, é pouco preparada para as sutilezas teológicas dos escolásticos. Desamparados pela Igreja, perdidos também por causa de seu analfabetismo diante de um mundo no qual os livros começam novamente a circular após séculos, filiam-se aos movimentos heréticos. Como agora a Igreja move-se em busca de contradições, não consegue diferenciar ortodoxia da heresia, nem os simples iludidos daqueles dissidentes autênticos. Daí vem o clima de terror da Inquisição. Frei Guilherme é um fanático pela lógica, ensina a não multiplicarmos desnecessariamente o número das causas, é um cientista, mas não cai na Inquisição porque nega algo além do fenômeno particular.

Outra grande pergunta que Eco faz no romance é sobre a ciência e sobre como divulgá-la. Frei Guilherme admira seu conterrâneo Roger Bacon. Bacon foi um empirista que acreditava no futuro poder das máquinas para transformar o mundo. Eco acusa a Igreja de ter feito a biblioteca um labirinto no qual o povo não pode entrar. A ciência está nas mãos de poucos, pois o povo é analfabeto e ignora o latim. Quer que a ciência e seus segredos sejam propriedade de uma futura comunidade dos doutos, o que é bastante estranho e vago. Supostamente, no livro, o monastério teria a única cópia remanescente do segundo livro da Poética de Aristóteles, que trata do riso. Jorge de Burgos é um conservador que não acredita no avanço do conhecimento, apenas na conservação daquilo que já existe. Julga que o riso é perigoso, que que se o mesmo for elevado a uma nova arte, poder-se-ia rir do próprio Deus.

No fundo o Nominalismo é o estado mais agudo desta filosofia aristotélica-tomista do século XIII. Se se penetra cada vez mais no reino da matéria, procurando ver nela supostos sinais de Deus, fica-se admirado mais pelos efeitos do que pela suposta causa. Deste fracasso nasce o Nominalismo, que vai negar a existência universal. Da filosofia platônica em si não se pode falar, porque os diálogos de Platão estavam perdidos há séculos na Europa Ocidental, e o Cristianismo sempre teve tendência ao sensualismo.

No fim os crimes serão resolvidos não porque haja uma causa antevista por Frei Guilherme. O mundo é um labirinto e não há um mapa definido para nos orientar. O Deus do protagonista, tal como o de Guilherme de Ockham, é um Deus arbitrário, que pode mudar a regra do jogo a qualquer momento. Primeiro foi negado as Ideias eternas, tornando-as imanentes à matéria, e para daí apegar-se à matéria em si foi apenas um passo…

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