Resenha: Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre

O maior clássico da Sociologia brasileira, e um dos grandes livros dessa ciência em nível mundial, Casa-Grande & Senzala é uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro- com todas as qualidades e seus vícios-, e foi importantíssima para consagrar a importância do indígena- e principalmente do negro- no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.

Confesso que antes de iniciar a leitura dessa obra de Gilberto Freyre acreditava que o livro defendia a tese romântica de que no Brasil vigorava desde o início da colonização uma espécie de “democracia racial”, tese que quem vive aqui sabe muito bem que é falsa. Entretanto, Casa- Grande & Senzala é uma obra que exalta de maneira magnífica a formação de nosso povo, mas em nenhum momento Gilberto Freyre tenta esconder nossas mazelas de uma sociedade patriarcal, analfabeta e violenta desde a infância. Se o ilustre sociólogo pernambucano defende de certa maneira a especificidade de nossa escravidão, é porque comprovadamente não foi tão brutal e segregadora como a da colonização espanhola, e muito menos como a da colonização inglesa na América do Norte, tese que mesmo sociólogos americanos reconhecem, fora os testemunhos de quem presenciou os acontecimentos da época.

Freyre defende a colonização portuguesa pelo fato de que não possuía o erro da colonização espanhola, que foi o fanatismo religioso impulsionado pelo Concílio de Trento, nem o racismo e a noção de pureza de raça da colonização protestante da América do Norte. Desde o início nem a pureza da fé e nem os votos de castidade foram respeitados pelo clero. Isso evitou que o fanatismo religioso de tipo hispânico penetrasse em solo brasileiro, porém o pouco fervor do clero e seus preconceitos também o levaram a negligenciar a educação mesmo dos “brancos”, e ainda a excluir dos seminários “gente de cor”.

Casa-Grande & Senzala é célebre pelos seus capítulos sobre a sexualidade do Brasil Colonial. É importante a descoberta de Freyre de que não foram os indígenas e nem os negros vindos da África que criaram a fama do brasileiro de promíscuo sexual. Mais até do que o furor sexual do europeu, foi a promiscuidade do sistema escravocrata e patriarcal da colonização portuguesa que serviu para criar um ambiente de precocidade da sexualidade e de propagação de doenças venéreas como a sífilis, doença europeia por excelência. Tanto os índios quanto os negros eram povos bem pouco sexualizados e nem de longe possuíam a malícia sensual dos europeus.

Essa defesa que Freyre faz da sexualidade do índio e do negro foi fundamental para servir de barreira para um crescente racismo “científico” que vinha se propagando desde o século XIX, e que servia de arma para apontar no indígena e no africano as origens de nossas mazelas sociais. Estas mazelas têm origem desde antes do Brasil ser descoberto, pois alguns dos problemas de Portugal refletir-se- iam no futuro Brasil. Povo guerreiro e um Estado organizado antes que as outras nações europeias, Portugal esteve sempre em contato com o islã e seu sistema escravocrata. A cada batalha contra os mouros eram feitos escravos, e isso foi péssimo, pois se sabe que a escravidão cria um desprezo pelo trabalho, especialmente o manual. Trabalho era coisa de mouro, os portugueses logo aprenderam. De Portugal também viria a feitiçaria da Europa, que vivia o auge da caça às bruxas. Freyre também nesse ponto defende os africanos de terem “corrompido” o homem branco com suas famosas “mandingas”.

A miscigenação deu-se pelo fato de que existiam poucas mulheres brancas disponíveis para os colonizadores. A Igreja incentivou o casamento com as mulheres indígenas, mas não com as negras de África, lembra Gilberto Freyre. Aos negros e mestiços seriam vetados o acesso ao sacerdócio. A Igreja pouco iria preocupar-se com a educação do negro. Quanto aos índios e ao sistema de missões criado pelos jesuítas, Freyre julga que o sistema só poderia ter terminado em fracasso como acabou acontecendo, pois dava pouca autonomia aos índios e, ao invés de ensiná-los trabalhos manuais- o que teria sido mais adequado caso os missionários fossem os franciscanos-, os jesuítas tentavam ensinar Latim e monogamia aos índios. É claro que não podia dar certo.

Crianças brancas, mestiças e negras eram criadas no mato, pois quase não havia escolas e pouca educação religiosa. Nessa questão, Freyre aponta uma das raízes da nossa sociedade violenta. O menino branco da Casa-Grande aprendia desde a infância a ser cruel com os animais e com seus “inferiores”, ou seja, os mulatos e negros. Esse “moleque” negro ou mulato, que acompanha sempre o menino branco em sua infância, serve mais como um “saco de pancadas” e laboratório para a violência patriarcal futura a ser exercida contra outras pessoas na vida adulta, principalmente contra as mulheres. O homem patriarcal brasileiro herdou o costume do sentimento de posse em relação à sua mulher- ou de “lavar a honra”, caso sentisse que estava sendo traído- de Portugal, que por sua vez sabia muito bem do costume muçulmano nessa área. A violência, o sistema patriarcal opressor da mulher, o ridículo costume do título de “vossa excelência” ou do “doutor”, que o brasileiro dá a qualquer desqualificado que tenha um mínimo de autoridade ou dinheiro, são heranças malditas da colonização. Não que o brasileiro não pudesse ser alegre também. Esta característica Freyre atribui ao negro africano, povo alegre e adaptado ao nosso clima tropical, que ele contrasta à melancolia do índio e ao mau-humor do português.

Como disse no início do texto, Freyre não romantiza o sistema colonial e escravocrata criado no Brasil por Portugal. O livro tem um ar poético sem dúvida. O que Gilberto Freyre fez foi exaltar a contribuição das três raças que formaram nosso caráter. Portugal criou um Império que estava isento dos excessos de outras civilizações mais poderosas da época. Povo português bem pouco “branco” para os padrões europeus, miscigenado graças às relações com árabes e judeus ao longo de séculos, não trouxe para cá maiores preconceitos. Não foi a miscigenação brasileira que nos deixou de legado muito de nossos problemas atuais, e sim a escravidão e sua mentalidade, que ainda está presente em boa parte do Brasil do século XXI. Casa-Grande & Senzala é uma das grandes obras nacionais que representam o gênio criativo do brasileiro.

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