Resenha: Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche

Zaratustra grita, entre montanhas e vales, em um tom grandioso: “eu vos anuncio o super-homem!” As consequências destas palavras poderosas estão vivas ao longo do tempo. Zaratustra é uma mistura de filósofo pré-socrático com profeta bíblico. A principal obra de Nietzsche é um grito desesperado de uma civilização perdida em termos religiosos, metafísicos e morais. A história problemática da religião cristã na Europa produziu Zaratustra. Deus e seus mandamentos, o sentido histórico, a impossibilidade da metafísica a partir de Kant, as ciências, o Darwinismo, todos são responsáveis pela crise que Zaratustra pretende solucionar. Se Nietzsche estava correto em sua obra, que mistura poesia, filosofia em um tom bombástico, que não aprecio muito, semelhante ao de Santo Agostinho em sua Cidade de Deus, esta pequena análise pretende fornecer alguns elementos.

Nietzsche foi um filósofo extremamente preocupado com a moral. Você dificilmente irá encontrar em suas obras uma filosofia da ciência, metafísica, teoria do conhecimento, áreas importantes para a maioria dos filósofos. A obsessão de Nietzsche é com a questão moral. O caos de Dionísio contra a racionalidade de Apolo (Sócrates). E a outra obsessão dele é com o problema de Deus, não em um sentido teológico, ou uma preocupação com a questão da existência do mal, mas no sentido moral. Não há como compreender Nietzsche sem levar em consideração que o Deus que está morto era um enorme problema para os europeus do século XIX. “Nós o matamos”, e os europeus são os responsáveis, ninguém mais.

Nietzsche foi muito influenciado por Schopenhauer como ele próprio diz. Perceba-se que esta influência foi invertida como um Schopenhauer de cabeça para baixo. Se Marx inverteu Hegel, Nietzsche fez o mesmo com seu mestre. Se Schopenhauer afirmava que o caminho da salvação era negar a Vontade, Nietzsche ensina o contrário: a Vontade precisa ser afirmada. Este é o grito de Zaratustra. Agora, a inversão de em um outro sentido que Nietzsche promove é a do problema de Deus. Em Assim falou Zaratustra, Deus é mencionado algumas vezes. O famoso “Deus está morto” é o grito desesperado da burguesia europeia, e só faz sentido em um contexto europeu. Por que é a inversão de Schopenhauer? Porque o “problema” de Deus não existia para Schopenhauer. Sua própria filosofia, sua metafísica, não necessitavam de nenhum Deus. Ele mesmo ficou surpreso quando as primeiras traduções dos textos sagrados do Hinduísmo e do Budismo chegaram em suas mãos. Não há Deus para os hindus e budistas. Nem mesmo entre os nativos americanos havia um deus criador. Deus e seus múltiplos problemas eram uma obsessão para o Cristianismo, jamais para o espírito oriental. Pensa-se muito em como Nietzsche foi ousado e sacrílego em fazer seu Zaratustra proclamar que Deus estava morto, mas não descobrem que é apenas uma constatação desesperada a partir de um contexto puramente localizado de uma civilização. Schopenhauer, poucos anos antes, chegou à conclusão de que, mesmo que existisse um Deus, esse Deus só poderia ser um Deus do Mal. Uma afirmação muito mais profunda, corajosa e com significados metafísicos muito superiores que a de Zaratustra. “Deus está morto” não possui conotações teológicas, ao contrário do que se imagina. É apenas o resultado óbvio da dessacralização de tudo promovido historicamente pelo Cristianismo, nada mais. “Deus” é uma palavra que está sempre na boca de Nietzsche, enquanto na filosofia de Schopenhauer ele não desempenha nenhum papel. “O que você resiste, persiste”, dizia Jung. Falar tanto de Deus revela a tradição bíblica que ainda permanece.

Antes, portanto, de prestarmos atenção na ênfase moral de Zaratustra, temos que analisar o contexto histórico que produziu toda esta situação. Se há uma característica que diferencia o Cristianismo das religiões orientais é a inacreditável preocupação com a História. O Cristianismo pretende ser a consumação de uma Revelação produzida ao longo de séculos por um Deus histórico. Isto gera uma situação que o Cristianismo jamais conseguiu resolver que é uma fé que precisa ser confirmada, às vezes de maneira dramática, a todo o momento. O Cristianismo é uma religião extremamente instável. Uma verdade que pretende estar situada em um contexto histórico muito específico (a Palestina do século I) é o contrário de religiões atemporais como o Hinduísmo. Os hindus não precisam de confirmação histórica ou arqueológica para manterem sua fé. Ela está situada além da história humana. O Cristianismo produziu indiretamente a absurda conclusão de que a verdade é apenas uma questão de calendário. E mais: gerou dois filhos bastardos também obcecados por história, que são o darwinismo e o marxismo.

A religião cristã tende a olhar para o Judaísmo como apenas um meio para o aparecimento de Cristo, e os pagãos como um resquício talvez da presença do Demônio no mundo. Eles estão ali apenas para que a luz cristã brilhe mais intensamente. Vejamos os católicos falando com desprezo de que Platão falava por mitos, enquanto Aristóteles era “científico”, ou seja, o filósofo ateniense foi uma “preparação” para o pensamento mais “avançado” de Aristóteles. Zaratustra vai utilizar o esquema histórico do filho bastardo do Cristianismo, que é o darwinismo, quando diz que o homem é apenas um meio entre o macaco e o super-homem. Nietzsche pensa que escapa do sistema cristão, mas ele apenas o repete usando Darwin. Sem ele, Nietzsche não pode ser compreendido.

O super-homem precisa aparecer, precisa deixar para trás seu antepassado homem como como esse sucedeu ao macaco. Em Schopenhauer o homem não pode fazer muita coisa para superar as condições com que se depara. Fruto de uma Vontade cega, nos quais o princípio de individuação do espaço-tempo é outra fonte do mal, Schopenhauer concorda com Lutero que somente a Graça pode salvá-lo. A evolução darwinista é mais democrática do que a de Nietzsche, pois é concedida a uma espécie inteira de maneira “gratuita”, fruto de um “acaso”. Jamais é dada a um indivíduo isolado, a um rationalis naturae individua substantia. O surgimento na História de um novo ser, como quer Nietzsche, necessita de todo um passado para que seja justificado. O Cristianismo preparou o caminho com toda sua ênfase moral que sucedeu ao ensinamento de Sócrates. O tempo ficou maduro.

Há um capítulo que ajuda a ilustrar toda a preparação cristã para o futuro nascimento do Zaratustra de Nietzsche. No livro História da Filosofia Cristã, de Philotheus Boehner, o capítulo (pág.27) que narra a conversão de Justino, o Mártir é especialmente revoltante. Justino era pagão, e desejava alcançar a sabedoria. Após ter se decepcionado com mestres peripatéticos e pitagóricos, encontra respostas no platonismo. Certo dia, aparece um ancião (uma espécie de Zaratustra, destruidor da ordem antiga e anunciador de novos valores). Justino, fiel ao seu platonismo, responde maravilhosamente a todas as interrogações do ancião. Afirma que o objetivo final da filosofia de Platão é aproximar nossa alma e a de Deus. Aí começa o papel destruidor do cristão: não há qualquer parentesco entre nossa alma e a de Deus; não há nela nada de divino; a alma tem início, assim como o mundo; não existe metempsicose e nem mesmo nossa imortalidade está garantida! Grita o nosso Zaratustra cristão! É aqui que começa o processo de dessacralização de tudo promovido pelo Cristianismo como bem notou Alain de Benoist. O Niilismo europeu tem início aqui, pois ignorando o Mito e o substituindo pela História, o Cristianismo deu início a seu próprio julgamento. Nietzsche, portanto, era inevitável.

Com o Mito morto, o surgimento de uma civilização industrial acelera o processo de desencantamento da Europa. Resta apenas um vago moralismo, estimulado pelo protestantismo, que se tornou uma religião civil. Kant e seu sistema moral são a consequência, e Zaratustra irá denunciá-lo. “Tu deves, assim se chama o grande dragão”. Aí está exposto Kant. Seu sistema moral nada mais é que uma forma laicizada do Decálogo de Moisés, como notou Schopenhauer. Apesar de Kant assim afirmar, ainda não temos o homem autônomo que a filosofia quer produzir. Ele ainda precisa de mandamentos! Zaratustra pretende então destruir estes valores para criar novos. Novamente entra em cena a noção de um progresso que já havia falhado. O Cristianismo retirou do mundo os deuses antigos, a era industrial e o telescópio varreram o Deus cristão dos céus, e agora Zaratustra quer tirar do mundo a única coisa que restou, que é a moral. Como seria o futuro?

A moral proposta por Nietzsche também tem que obrigatoriamente desprezar o Estado moderno. Há uma crítica explícita a Hegel e seu endeusamento do Estado, provavelmente também um resultado da desmitologização da Europa. Kant refugia-se na moral, e Hegel no Estado. Zaratustra rejeita ambos. Não haveria a menor possibilidade de o super-homem habitar em uma democracia liberal moderna, que iguala todos os homens, coisa mais abominável para ele. Por isso Zaratustra habita as montanhas, os desertos e os vales.

Toda a simbologia de um Zaratustra ou de um super-homem futuro habitando as montanhas e olhando a ralé do alto é interessante. No entanto, a ralé não seria necessária para que a grandeza do super-homem ficasse evidente? Se todos virassem Zaratustra, a medida da grandeza ficaria disforme, não é? Talvez Zaratustra dependa mais da ralé do que o inverso. “O que está no alto é como o que está embaixo. ”

Há na obra Science, Politics and Gnosticism, de Eric Voegelin, a acusação de gnosticismo a Nietzsche por causa de sua libido dominandi, sua vontade de ser Deus a partir do assassinato de Deus. Voegelin menciona o problema da proibição de perguntas. Mais uma vez coloca-se o problema do ponto de vista do Ocidente. Não haveria nenhuma necessidade de se “assassinar a Deus” para Schopenhauer ou para um oriental. Schopenhauer negava qualquer Criação e, junto aos hindus, afirmava que éramos incriados. Para o Cristianismo, isso é impensável, pois o Deus que antes de tudo “cria”, é a base da fé. Voegelin afirma que a partir do momento em que “assassinamos a Deus”, segue-se o assassinato dos homens, especialmente dos revolucionários. Nietzsche teria aberto caminho para os crimes do Nazismo e do Comunismo. Ora, se há uma coisa que os gnósticos abominam é a História, e ao longo do tempo não recordo dos seguidores de Mani perseguindo cristãos, ou os cátaros planejando uma invasão militar a Roma. A partir do momento em que o Cristianismo conquistou o poder, seguiu-se a matança dos pagãos, gnósticos, heréticos, das bruxas, judeus, muçulmanos. E nada disso foi feito por gnosticismo, e, sim, por causa da História! Por causa de “revelações”, proclama-se que nada mais pode surgir. A proibição de perguntar é típica da Teologia, antes de ser do marxismo, e na Idade Média não se podia perguntar. Não foi Nietzsche quem matou Deus; foi a Europa.

Há uma libido dominandi em Nietzsche, é evidente. Zaratustra afirma a Vontade de Potência, a moral dos vencedores, o culto de uma força titânica, que passa por cima de toda moral. Curiosa é a analogia que podemos fazer com o bíblico YAHWEH a partir da obra de Jung “Resposta a Jó”. Jung ficou surpreso com o que descobriu a partir da leitura do livro de Jó. O YAHWEH bíblico pouco se preocupa com questões morais. Seu servo Jó, lançado por Ele mesmo em uma tremenda miséria, não desperta qualquer sentimento de compaixão por parte de YAHWEH. Como o Zaratustra de Nietzsche, o Deus bíblico do livro de Jó está além da moral. Ele preocupa-se muito mais é com demonstrações de força, gabando-se de que o auge da Criação Divina é a baleia no mar e o hipopótamo na terra! A Imago Dei do ser humano é descartada. O poder faz a lei e a força da argumentação. Como afirma Jung (pág. 34. Ed. Vozes), “de fato Javé tudo pode e se permite, sem pestanejar um momento. Ele é capaz de projetar, com impassibilidade férrea, o seu próprio lado sombrio e permanecer inconsciente disto, à custa do ser humano. É capaz de apelar para o seu poder supremo e promulgar leis que para ele significam menos que o ar. Os assassínios, os morticínios, não lhe causam preocupação, e quando lhe dá na veneta é capaz igualmente de, qual um senhor feudal, ressarcir generosamente os danos provocados pelas suas caçadas nos campos de cereais dos servos”. Nietzsche pensa que Deus está morto, mas o Deus judaico permanece fazendo sombra sobre ele. As estrondosas manifestações de grandeza nos discursos de Zaratustra são semelhantes ao do grande Deus bíblico, incapaz de uma melhor reflexão sobre a incrível complexidade do mundo. O que importa é ser grande, destruir e depois restituir valores novos. No caso de Jó, novos filhos; no de Zaratustra, uma nova lei moral. Nietzsche mesmo sabe que destruir é muito mais fácil de construir, vide quantos séculos a Europa levou para recuperar o patrimônio intelectual dos pagãos, portanto, o preço a se pagar em cada destruição é alto demais, mas se a força supera o intelecto, fica difícil perceber isso.

Zaratustra proclama outra grande novidade: o eterno retorno de todas as coisas. O paganismo grego tinha uma noção de história cíclica e não-linear como a da Bíblia. Porém, este eterno retorno fica bem pouco explicado. No fundo, talvez, retornemos a um início de todas as coisas e tudo poderá ser reconstruído novamente para depois ser destruído em uma repetição infinita. Schopenhauer e René Guénon ensinavam que, em uma escala de eternidade, havia pouco espaço para afirmarmos qualquer grande novidade, e que a noção de uma História que gera sempre algo melhor era estúpida. Guénon acrescentava que cada ser que vem ao mundo, independentemente do tempo que vive, cumpre o seu potencial na Terra, portanto não há necessidade de nenhum retorno e nada fica incompleto. O que passou, passou, e a vida continua de outras formas que ainda nos são desconhecidas. Nietzsche não ensinava nenhuma metafísica e, para ele, este mundo basta.

“O querer liberta”, diz Zaratustra. Todos conhecemos a fama que Nietzsche tem de ser um filósofo corajoso, que ousou ensinar algo que chocou a humanidade. Mas a realidade não é bem assim. Invertendo Schopenhauer, Nietzsche quer que a Vontade prevaleça, e não que seja negada. Para um livro tão famoso de um filósofo tão audacioso, nada aqui é dito sobre o maior exemplo que temos da Vontade: o sexo. Schopenhauer queria que negássemos a Vontade através do ascetismo porque o ato sexual era considerado por ele o que havia de mais poderoso na natureza. Schopenhauer fazia sexo, falava sobre as genitálias masculina e feminina -os centros da Vontade- e escreveu ousadamente sobre a homossexualidade. Nietzsche pouco teve de vida sexual e é risível o que ele tem a dizer sobre sexo comparado a Schopenhauer. A Vontade, especialmente o ato do coito, o maior prazer que o ser humano pode ter, a reprodução, une os humanos a grande parte dos seres vivos que se reproduzem de maneira sexuada. Fica complicado falar sobre a Vontade de Potência entre os animais, por isso Schopenhauer foi mais profundo. A Vontade humana já é suficientemente forte e muitas vezes caóticas para que seja estimulada conforme quer Nietzsche. As consequências são quase sempre terríveis. Nada é mais poderoso em nossa vida do que o instinto sexual, e nem a psicologia foi capaz ainda de compreender como funciona exatamente este mecanismo. Diariamente, da mesma forma que em todos os séculos, vemos o sexo causar tantas mortes, loucura, crimes, e o que o Zaratustra tem a dizer sobre isso? Temeridade pura, para dizer o mínimo.

Zaratustra quer também a extinção de todo o reino da finalidade. Ele quer que seja estabelecido o reino do acaso! O darwinismo reaparece na boca do profeta. Não há mais religião, nem moral e muito menos ciência. A negação que o mundo tivesse algum significado moral era, para Schopenhauer, a própria voz do Anticristo. Um mundo totalmente imanente, naturalizado e sem fins, só pode ser mesmo o reino do Anticristo. Nietzsche conhecia muito bem essas palavras ditas por seu mestre filosófico; e as assumiu para si.

 

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