Um dos objetivos de A integração do negro na sociedade de classes é o de demolir o mito da “democracia racial” brasileira, e o autor, Florestan Fernandes analisou diversos dados referentes à população negra e mulata em São Paulo, especialmente na primeira metade do século XX. O que fica bem claro é que a Abolição da escravatura libertou os negros “oficialmente”, mas que na prática a discriminação e a submissão da população negra aos brancos continuaram na vida cotidiana. Ignorados pela República, que se preocupou mais em trazer milhares de imigrantes europeus com o indisfarçável objetivo de promover o branqueamento da população brasileira, os negros e os mulatos acabaram por ser preteridos pelos imigrantes no mercado de trabalho. Nunca houve por parte do governo ou da Igreja qualquer preocupação com os negros e esses ficaram esquecidos depois da escravidão, já que supostamente não serviam nem mais para trabalhar. Os negros tiveram que suportar subempregos por causa da discriminação da população branca, discriminação essa que Florestan Fernandes atribui à falta de ética de trabalho de uma parte da população negra.
O sociólogo paulista estudou bem o drama da população negra e os muitos desajustes aos quais ela estava submetida. No livro fica claro que o principal problema era de origem sexual. Os negros brasileiros tendo esquecido a ética sexual original da África e nunca tendo absorvido a ética familiar dos brancos portugueses, no momento em que se viram jogados na cidade grande sem qualificação e sem nenhum tipo de proteção social, terminaram por habitar em cortiços nos quais grupos inteiros eram obrigados a conviver sem nenhum tipo de privacidade. O resultado foi que as crianças estavam em contato com a promiscuidade sexual dos adultos, uma vez que as relações sexuais eram praticadas à vista de todos.
Florestan Fernandes diz que homens negros viam no ato sexual a única atividade prazerosa que podiam praticar durante o dia, já que o trabalho honesto estava bloqueado a muitos deles. Sem uma noção de como criar grupos familiares sadios, as mães (e principalmente os pais) largavam na rua seus filhos ainda pequenos para que outras crianças ou um adulto mais caridoso cuidassem deles. É óbvio que isso raramente acontecia e o resultado era mais uma geração perdida. Aparentemente nesse período as mulheres tiveram mais acesso ao trabalho do que os homens, sendo que a maioria delas trabalhava como doméstica (esse tido como verdadeiro trabalho de “negra”). Com isso surgiram diversos casos de homens negros que simplesmente se recusavam a procurar emprego para viver às custas da mulher que trabalhava. Fora o preconceito de cor, o homem negro ficou estigmatizado entre a população paulista como “malandro” e “vagabundo” por esses fatos. Entre os próprios negros começou a haver discriminação, porque qualquer homem negro que conseguisse superar a rotina do desemprego, da miséria e da ignorância começava a evitar outros negros que se acomodavam à vadiagem e a ficar o dia inteiro no bar. Aqueles que percebiam que um negro do grupo havia subido de posição desprezavam o mesmo porque “se comportava como branco”.
O livro reúne diversos depoimentos de pais e mães que tomavam consciência de que o cotidiano de opressão dos negros só iria acabar quando esses conseguissem ter acesso à educação. O problema é que nas raras vezes que a criança negra tentava dar sequência aos seus estudos, a escola não o ajudava porque os colegas brancos o discriminavam e até a professora exibia preconceito; no entanto, o maior entrave vinha da própria família e outros conhecidos negros. A maior parte deles dizia que estudar era inútil e que o negro mesmo queestudasse não iria ser aceito nunca no mundo dos brancos. Com isso, mesmo que um pai, uma mãe ou a avó dissesse para a criança estudar, os outros negros da família ou conhecidos faziam pressão para que ela saísse da escola e fosse trabalhar. O resultado era que o círculo perverso da ignorância nunca era quebrado. Os brancos exibiam o seu preconceito de cor e acusavam os negros de serem ignorantes e pouco afeitos ao trabalho. Quando um negro resolvia tentar mudar a situação, os outros se insurgiam contra essa tentativa, e nunca que os negros conseguiam mudar esse estereótipo do analfabetismo e da “vagabundagem” inerente a essa raça. Florestan Fernandes demonstra, no entanto, que nem tudo estava perdido. Com o tempo, muitos negros começaram a ter consciência, mais até do que antes, que sem uma ética familiar forte igual a dos brancos eles jamais conseguiriam modificar sua realidade e combater de maneira eficiente o preconceito.
O livro demonstra que em São Paulo (que é o caso estudado no livro, o que não quer dizer que aconteceu o mesmo no resto do Brasil) a população negra começou a aprender a valorizar a ética familiar e de trabalho especialmente através do contato íntimo com os imigrantes italianos. Através desse contato, núcleos familiares negros foram surgindo junto com a valorização do trabalho duro e constante e da prática da poupança. Quando isso começou a acontecer, os negros que desprezavam o trabalho e que viviam na ociosidade passaram a ser a exceção, e não mais a regra entre a população masculina. No livro, Florestan Fernandes faz um estudo do estado caótico dos grupos negros paulistas e seus próprios problemas internos. Mais adiante, quando o negro tenta mudar sua realidade, Florestan passa a desconstruir o mito da democracia racial brasileira. O sociólogo paulista nega que a população branca brasileira tenha conspirado para destruir e humilhar o negro; entretanto, o racismo contra o negro e o mulato era forte em todos os segmentos da sociedade paulista, principalmente entre as famílias tradicionais que já viviam há séculos na cidade. O curioso é que os diversos grupos de imigrantes europeus que chegavam a São Paulo raramente tinham visto um negro antes, mas logo aprendiam com os brasileirosa discriminar o negro e terminavam sendo mais racistas do que os habitantes locais. Eram mais realistas que o rei. Florestan mostra que mesmo que o negro com o passar do tempo começasse a se qualificar cada vez mais para o mercado de trabalho, os brancos brasileiros dessa suposta “democracia racial” evitavam ao máximo reconhecer esse negro qualificado como igual. Se antes a desculpa era que o negro era desqualificado, agora o negro tem que ser tratado diferente somente pela cor. Vários casos mostrados no livro demonstram que os empregadores se recusavam a empregar negros mesmo que estes fossem mais qualificados que o branco. Isso acontece até hoje no Brasil.
Pelos depoimentos coletados no livro, quase ninguém admite ser racista, no entanto, nenhuma daquelas pessoas admite o fato de que o negro é um semelhante, e que pode ocupar os mesmos empregos que o branco. O problema racial brasileiro é que todo mundo até hoje acredita que vivemos nessa suposta “democracia racial”, portanto o governo não precisa tomar qualquer atitude para ajudar os negros, pois somos todos iguais; no entanto, os brancos quando veem um negro na mesma situação e competindo com ele na mesma área, não admitem esse fato e tendem a ficar muito incomodados com isso, daí que o racismo explode. Para esses “brancos” vivemos em paz desde que o negro fique no seu lugar; no momento em que o negro passa a querer a ter os mesmo direitos que o branco aí o racismo vem à tona. Recentemente essa elite que finge não ser racista protestou (e protesta até hoje) com a implantação da lei de cotas nas universidades. Quando isso aconteceu, o racismo mostrou a cara novamente. Da mesma forma que essa elite racista reagiu de maneira preconceituosa na época retratada no livro de Florestan Fernandes, quando de repente viu homens e mulheres negros atingindo o mesmo nível que os brancos, a elite perversa do Brasil não quer ver os negros tirando vagas de seus filhos nos cursos mais disputados das nossas universidades. O que vemos hoje no Brasil é que o governo e a população negra não aceitam mais esse mito de que o Brasil não tem racismo. Acredito que juntando educação com políticas públicas, a realidade da população negra do Brasil pode ser modificada para melhor cada vez mais.