Resenha: O Amor e o Ocidente, de Denis de Rougemont

o-amor-e-o-ocidente.png

Denis de Rougemont acreditava que o casamento vivia uma crise (no início do século XX) sem precedentes. Para ele, essa crise teria tido início séculos antes, e em seu livro O Amor e o Ocidente ele pretende apontar os culpados por ela.

Sua tese é sobre a antítese amor e paixão. O casamento, no Ocidente, teria funcionado relativamente bem ao menos até o século XII, pois até aquele momento estaria protegido sob as bênçãos do Ágape cristão. Para quem ler esta obra, essas minhas palavras não ficarão tão óbvias assim, pois o autor não nos explica como o casamento teria funcionado anteriormente. Temos a impressão que o auge desta instituição teria sido na Alta Idade Média, especificamente nos séculos VIII, IX e X, que reconhecidamente foi uma época de grande elevação moral, ao menos é que posso deduzir das ideias do autor.

Não consegui saber se Rougemont era católico ou protestante, mas no livro ele aparenta ser católico. O que acontece, a partir do século XII, que traz uma revolução na ideia de casamento? A introdução (ou será reintrodução?), na Europa Ocidental, do ideal da paixão romântica, contrária ao Ágape cristão. Portanto, os cristãos europeus viviam, até o início das Cruzadas, na elevação moral do sacramento do casamento; então aconteceu o desastre.

Quem foi, segundo Rougemont, o responsável pela introdução da heresia da paixão? A resposta é: não somente um, mas foram vários os responsáveis pelo terremoto que começou a destruição do catolicismo medieval. Não há surpresa nos culpados que Rougemont menciona: muçulmanos de Al-Andaluz, o platonismo (Plotino) e o “dualismo” maniqueu e cátaro. Todos esses são os inimigos tradicionais da Igreja (os católicos assim consideram) ao longo dos séculos, que sempre trouxeram a revolução que confunde a paz e a elevação espiritual do Ocidente.

Depois de ter apontado o dedo para os inimigos, fica mais claro o objetivo do autor: ele quer fazer um contraponto entre o amor cristão (que somente os cristãos aparentemente entendem o que é amor) e a paixão dos “dualistas” maniqueus e platônicos. Os muçulmanos, que não seriam dualistas, também entram na condenação do autor. Muito bem. De acordo com Rougemont, o conceito de paixão romântica entrou na Europa Ocidental pelos poetas islâmicos de Al-Andaluz, que por sua vez haviam herdado o seu “dualismo” dos iranianos, dos maniqueus e de Plotino. Todos esses, pelo que compreendi, bebiam na fonte do Eros platônico. No livro sobra até para os Hindus, Budistas e Jung! Todo mundo é herético e ninguém compreende o amor católico!

O enorme problema no qual Rougemont cai é que sua tese é absolutamente falsa- e ele mesmo percebe. Ele afirma que a paixão surge pelo culto da mulher, que é um substituto do desejo de morte, uma vez que os “dualistas” rejeitam o mundo, mas também não querem deixá-lo via suicídio. O romance de Tristão e Isolda é o marco inicial desta heresia que abala a elevada moral dos medievais.

Por que, segundo nosso autor cristão, os “dualistas” querem morrer? Porque negam a Encarnação e estabelecem um conflito entre o Bem e o Mal. Pois bem: se assim for, então todos seriam “dualistas”, porque fora os cristãos, nenhuma outra religião admite a Encarnação (os Hindus e Budistas aceitam não apenas uma, mas várias). Dificilmente alguém alega que os judeus e os muçulmanos são “dualistas”, mas eles não admitem, em hipótese alguma, a Encarnação. Rougemont se condena (na página 62, Ed. Guanabara, 1988) quando reconhece que os verdadeiros dualistas são os cristãos! Chega a ser patética a desonestidade do autor, pois ele deveria ter terminado o livro ali mesmo. Os maniqueus não são dualistas de maneira alguma, porque Rougemont reconhece que, no final (para os “heréticos), haverá uma restauração final de todas as coisas, mas que os católicos, sim, são os verdadeiros dualistas por afirmaram a eternidade do Mal e do Diabo, sendo que o conflito entre Deus e Satã não terá fim jamais. Os budistas, segundo Ananda Coomaraswamy, superam esta oposição dizendo que o céu e o inferno estão em todo o lugar, pois estão universalmente extensos (Buddha and the Gospel of Buddhism). Os “dualistas” até mesmo acreditavam na união da alma com Deus, mas rebaixavam o amor entre homem e mulher como secundário; mas o Cristianismo sempre negou esta união da alma com Deus. E davam mais valor ao instável amor entre um casal? Quem estaria errado e criaria aqui uma separação radical entre a humanidade e Deus?

Este tipo de desonestidade é, infelizmente, muito comum. Eric Voegelin fez o mesmo em seu livro A Nova Ciência da Política. Quis jogar a conta do Nazismo e Comunismo nos gnósticos (nunca compreendeu o que foi o gnosticismo) a partir de elementos falsos, sendo que, no livro mencionado, ele cita o platônico Celso, que percebeu no Cristianismo católico a fonte de uma revolução mundial futura. O que faz Voegelin? Ignora, pois toda sua obra futura teria sido arruinada se tivesse sido honesto neste ponto. Depois passa o tempo todo atacando Karl Marx como charlatão….

Rougemont, vendo que se meteu em uma enrascada, apela para a condenação da carne feita pelos maniqueus. Ora, os maniqueus respeitavam tanto a carne que não queimavam a carne de quem não concordava com eles na fogueira…

O autor pratica outra infelicidade quando quer demonstrar a superioridade do Ágape Cristão sobre o Eros (herético) de Platão. Ele simplesmente não compreendeu o que é o Eros platônico. O mesmo nada tinha de sensual, sendo apenas o reconhecimento da própria ignorância que deseja buscar o Bem localizado fora deste mundo. O Eros nada mais é do que um intermediário, um desejo de voar mais alto.

Os cátaros haviam cantado o amor para amenizar as condições brutais da sociedade feudal. O amor que eles cantam através dos trovadores era uma forma de sublimar a verdadeira paixão, tão cara ao catolicismo medieval: a paixão pela dominação, pela guerra, pela perseguição. A paixão é um furor cego, e lançar cruzadas e caçar hereges é a sua mais alta manifestação. Despejar a libido derramando sangue é a mais evidente maneira de impor uma “vontade de viver” que existe. Não somente os cátaros assim pensavam, mas também os budistas. E Jung via na vida de Cristo nada menos do que uma afirmação sempre renovada de uma paixão em um sentido negativo.

Este espírito sanguinário da cavalaria medieval é anterior ao aparecimento da heresia. Talvez o autor deveria ter questionado se as canções de amor dos cavaleiros não amenizava a incerteza de suas vidas. A vida na Idade Média era curta e brutal, e esta mesma cavalaria perdeu todas as guerras contra árabes, turcos e mongóis. Havia uma consolação humana a ser preenchida ali, não?

Quando chegamos ao fim do livro ainda há espaço para ficarmos estarrecidos. Rougemont defende, pelo que entendi, a volta do casamento ao estilo feudal. Ele quer que seja restabelecido a discriminação por posição social e financeira, e que a família imponha, de alguma forma, o noivo para a mulher. Isto é o que ele entende por “amor”.

Quando alguém se mete a escrever ou falar sobre coisas que não domina, o resultado só pode ser desastroso. O casamento pode estar em crise sob a perspectiva que ele adota (ou seja, casamento institucional católico), mas sob o ponto de vista da relação homem/mulher está onde sempre esteve. O valor do casamento só pode ser estabelecido não somente pelo amor, mas também pela compreensão da natureza masculina e feminina. Aqui temos um resumo de um dos problemas possíveis:

“Nas incontáveis qualidades da Lua, o homem viu o símbolo da natureza feminina, que parece para ele errática, mutável, inconstante e não confiável.

[…] o caráter lunar da natureza feminina aparenta ao homem ser dependente apenas ao capricho dela. Se ela muda seu pensamento, ele até pode conceder pela concordância geral; nunca ocorre ao homem que, se ela muda, é porque algo mudou dentro de sua própria psique, que está bem pouco sob seu controle quanto, talvez, as condições do tempo.

O homem assume que ela mudou seu pensamento por causa de um capricho ou, talvez, por razões egoísticas convenientes. Ele espera que se ela disse que iria fazer uma coisa, então é verdade que ela iria. Em certo sentido, é claro, é verdade que ela deveria, mas como a natureza da mulher depende de um princípio vital cíclico, mutável, isso significa que quando chega o tempo da mulher cumprir sua promessa, as condições realmente mudaram. Isto é muito difícil para um homem entender porque seu princípio interior é o Logos… […] o da mulher é o sempre mutável princípio lunar.”

Esther Harding, Woman’s Mysteries, The inner meaning of the moon cycle. (Tradução nossa a partir do original em inglês)

Este misterioso aspecto da psique feminina, que muitos homens não compreendem, é um dos motivos de um casamento não dar certo. Nada disso é abordado no livro, que só se preocupa em jogar nos gnósticos uma culpa inexistente. Este entendimento da autora envolve, talvez, uma psicologia do tipo gnóstica. Se levarmos este espírito de dominação masculino/feudal a um confronto com este caráter lunar/feminino o resultado só pode ser desastroso. Um bom livro poderia analisar isso.

Em resumo, Denis de Rougemont acusa toda as outras religiões (fora o Cristianismo) de heréticas e dualistas, pois não admitem a Encarnação e nem compreendem o casamento. O verdadeiro “amor” só pode existir nem casamento regido por leis feudais. Inacreditável!

%d