“Um, dois, três, porém o quarto Timeu, o último dos que ontem festejei aqui, e que me convidaram, onde está?”
Εἷς͵ δύο͵ τρεῖς· ὁ δὲ δὴ τέταρτος ἡμῖν͵ ὦ φίλε Τίμαιε͵ ποῦ τῶν χθὲς μὲν δαιτυμόνων͵ τὰ νῦν δὲ ἑστιατόρων
As palavras iniciais deste que é um dos diálogos mais inspiradores de Platão têm um significado muito maior e misterioso do que aparenta como veremos.
O universo de Platão é uma verdadeira obra da bondade Divina que o governa com sua providência, e cuja face está sendo sempre renovada; no entanto, é difícil de ser encontrado, e mais difícil ainda é comunica-Lo aos seres humanos. Não importa muito se Platão acreditava literalmente no Mito que coloca na boca do pitagórico Timeu. Como ele mesmo escreve, vai produzir um discurso verossímil, e invoca o deus para que do seu relato saia a verdade.
Giovanni Reale dizia que o Timeu é o que mais se aproximou de um Criacionismo na filosofia grega. Entretanto, acredito que o diálogo não deva ser confundido com uma criação a partir do nada como o do gênesis bíblico. Talvez devêssemos muito mais do que nos apegarmos ao aspecto físico do universo, prestarmos atenção à importância da criação da alma humana.
A alma tem precedência sobre o corpo. Quando é unida a um corpo, o universo é criado. Está no diálogo que o Deus levou ordem à desordem a uma matéria supostamente preexistente. Talvez possamos pensar que esta matéria é coeterna junto a Deus, e possui existência própria. Devemos perceber que sem a presença de Deus não haveria como pensar-se em uma matéria nem defini-la como caótica. Aqui não existe um Realismo cuja matéria é independente de um intelecto. A linguagem empregada por Platão é figurativa. A alma é mais velha do que a matéria (corpo), e este último submete-se a ela. Em certo sentido, como Deus é eterno, a matéria e o universo seriam “eternos” também.
Na matéria sempre haverá a presença de algum mal por causa de seu caráter indefinido. No princípio o movimento da matéria era sem medida. A organização da Alma do mundo como um círculo com um movimento ordenado e circular, possui uma autossuficiência que ama a si mesmo como o Deus de Aristóteles. É a alma que vai dar forma à matéria, da mesma maneira que numa escala inferior cada ser humano vai ser responsável por gerar cada vez mais ordem num universo em evolução.
A alma é sempre mais importante para Platão, e nele não há a crença aristotélica de que o homem é uma união de alma e corpo no sentido de toda as possibilidades estarem concentradas em cada um de nós aqui e agora. O princípio de individuação de Platão é a forma, mas não deixa de ser um mal a limitação que o corpo e o espaço/tempo nos impõem. Como bem definiu Silverman
nenhum particular será alguma coisa essencialmente: primeiro, porque irá possuir todas as suas propriedades da mesma maneira, ou seja, como formas-cópias entrando no receptáculo; em segundo, porque as configurações geométricas dos triângulos e das figuras complexas serão todas sujeitas à mudança e à dissolução.
[…] esta resposta não irá agradar à imagem aristotélica dos particulares- ou seja, particulares consistindo de matéria dotada de essências. Platão, no entanto, não considera esta imagem filosoficamente atraente. O reino da essência, o que a coisa realmente é, ao menos no Timeu, é o mundo das Formas. Platão não acha que exista nada a respeito da matéria, digamos, de Aristóteles, que justifique a predicação da natureza ou da essência do homem, ou da matéria em si, ou do particular o qual é a matéria.”
Allan Silverman, The Dialectic of Essence – A Study of Plato`s Metaphysics (tradução nossa a partir do original em inglês)
Adicionalmente, o choque produzido pelas sensações é tremendo (43). É uma verdadeira fonte de revoluções na alma humana. Seu corpo é formado por partículas que entram e saem, pois não há uma ligação fixa entre elas. Todo este relato tem implicações até mesmo na embriologia e no nascimento nas reflexões dos séculos posteriores dos neoplatônicos. O início caótico é corrigido posteriormente também pela educação, senão volta-se ao Hades como alguém incompleto.
Assim como a Alma do Mundo é esférica, a parte mais divina do ser humano, a cabeça, também é esférica. O termo usado por Platão para definir esta esfericidade é ολοκληρος (Todo), que foi retirado dos Mistérios de Elêusis, cujo sacerdote que fazia a iniciação do neófito havia de ter sido este poder de purificação. A cabeça vai ser a servidora do corpo inteiro e está protegida contra as depressões físicas do mundo.
Sendo a alma a parte mais nobre, e é ela que possui a inteligência, é dali que a ciência será gerada. A alma é invisível, imaterial, e como disse o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, é a partir do choque dialético entre o imaterial com o material que nasce a ciência. A matéria não explica a própria matéria, e a ciência é o estudo das causas e das coisas primitivas.
No Timeu (59), porém, Platão diz que a ciência positiva tem apenas um valor de recreação, um descanso para o filósofo enquanto não está mirando a Eternidade. É uma caça por opiniões verossímeis sem maiores remorsos
O sentido da visão, diz o filósofo, é o sentido de maior utilidade. Ela permite que observemos o movimento dos astros do céu, os criadores da ciência matemática, e como está na República, a visão é iluminada não somente pelo Filho do Bem, o Sol, no plano sensível, mas como pelo Inteligível no sentido metafísico. Os astros também produzem a música celeste no qual a música terrestre mais elevada capta para harmonizar nossos sentidos. Nossa voz produz discursos que, como ensina Nicolau de Cusa, quando auxiliados pelos óculos intelectuais, nos fazem capazes de passar por cima das contradições e discernir a unidade na multiplicidade, e cuja capacidade é infinita. A boca é o que faz jorrar as palavras para servir ao espírito, segundo Platão.
O Tempo nasceu junto com o Céu, e na imortal definição platônica, é a imagem móvel da eternidade. O universo, tanto de Platão como de Aristóteles e dos gregos, não pode ter um fim. Seria uma verdadeira heresia para eles uma crença como a de um apocalipse do tipo cristão. Deus tudo fez bom e não vai destruir a própria obra. Os astros dos gregos são Deuses, e nosso planeta Terra, para Platão, possui uma alma, que sempre se renova e dá à luz novas espécies. O sentido de evolução dos platônicos é bastante superior e não materialista.
No Timeu, Deus dá o comando para que os Deuses gerados por eles, num sentido bíblico, porém mais elevado, que sejam também criadores, que criem seres vivos. Igualmente, os seres humanos deverão seguir este modelo usando a ciência e o intelecto para “parir” novas formas que estão sempre em potência. O exemplo é dado por Jâmblico
Pois torna aquilo que é inefável na bondade dos Deuses capaz de ser expressado; ilumina aquilo que não possui forma em algo que possui forma e cria em razões visíveis, ou formas produtivas, o que no Bem divino está acima de toda a razão.
Jâmblico, On the Mysteries. (tradução nossa a partir da versão em inglês de Thomas Taylor)
Mais acima vimos como que, para Platão, as nossas possibilidades não estão todas concentradas no aqui e agora. Todos nós somos muito menos, a ao mesmo tempo, muito mais do que pensamos. A hipótese do receptáculo é uma das mais desafiadoras do Timeu. Vivemos em um mundo de mudanças constantes, por isso o filósofo pede que não façamos uma definição apressada dos elementos. Possuímos a espécie imutável e a mutável, e ele quer achar a terceira. O questionamento é a definição de água, mas ela evapora, congela, transforma-se. Platão pede que imaginemos um artista que modele em ouro todas as formas possíveis e, se alguém lhe perguntar o que é determinada figura, ele responderá: isto é ouro.
O próprio Platão considerava a maravilha de sua narrativa, pois todas as coisas que entram neste receptáculo são formas de seres eternos, e alguma coisa em comum sempre está em todos eles depois que de lá saem. Quando ele diz “ouro”, está falando da substância, e as diferentes figuras, o acidente. De modo curioso, Platão fala de uma trindade dos gêneros do ser: a Mãe (receptáculo), o Pai (modelo) e o Filho (a natureza intermediária)
τὸ μὲν γιγνόμενον͵ τὸ δ΄ ἐν ᾧ γίγνεται͵ τὸ δ΄ ὅθεν ἀφομοιούμενον φύεται τὸ γιγνόμενον. καὶ δὴ καὶ προσεικάσαι πρέπει τὸ μὲν δεχόμενον μητρί͵ τὸ δ΄ ὅθεν πατρί͵ τὴν δὲ μεταξὺ τούτων φύσιν ἐκγόνῳ (Timeu, 50)
Antecipando-se aos futuros críticos, Platão não foge ao desafio sobre se as Ideias existem ou não. Serão apenas nomes soltos no ar? O reino da verdadeira ciência é comparado com o reino da opinião. Só o primeiro possui ciência, é estável e é alcançado pela intelecção; no outro somos apenas persuadidos. Platão vai além e diz que da verdadeira ciência participam os Deuses, mas apenas um número pequeno de homens. Opinião e sensação são o reino da falsidade. Portanto, primeiro reino é o imutável, o mundo das Ideias, o segundo é o mundo sensível, o da opinião, e o terceiro é o espaço, percebido mais pelo sonho do que pelos sentidos, no qual de alguma maneira ocorre a individuação.
A ciência contida no Timeu (63) é um grande avanço para a época e para os séculos seguintes. Há ali uma noção avançada do que é a gravidade, e que Aristóteles não compreendeu e, como é comum nele, fez regredir a ciência. A explicação platônica é a que segue: se atirarmos uma pedra para o alto (elemento terra), ela irá contra a sua natureza pelo choque contra o ar; portanto, a pedra, com menor massa vai ceder ante à massa de maior volume, também pelo choque contra o elemento diferente (o ar). Então definiremos a pedra como leve e o lugar para onde ia, alto; o contrário como pesado e baixo. O Todo (ολοκληρος), como vimos, possui uma forma esférica, sendo assim não há como dizer que possui um alto ou baixo. Por conseguinte, a ação da gravidade não é causada porque a Terra está em uma região mais baixa que atrai os outros corpos. Essa era a opinião comum naquele tempo. A opinião de Aristóteles, no livro IV do Sobre o Céu, contra o Timeu é de uma puerilidade lamentável.
Na cosmologia do Timeu há também espaço para um debate sobre a existência ou não do vácuo. Ele diz (58) que o Todo (ολοκληρος) tem uma rotação periódica em certos momentos causando a mistura dos elementos, pois não quer nenhum lugar vazio. Acontece uma compressão e os elementos mudam de tamanho, cada um lutando por seu lugar, sendo que os corpos menores preenchem o vazio deixado pelos grandes. Assim Platão define este processo do devir do Universo. Há nele um local para a existência do vácuo, o que foi criticado por Aristóteles por não haver nele espaço para todas as suas figuras, mas que não poderia de fato acontecer, porque o Todo é um círculo.
Para finalizarmos, uma possível explicação para a enigmática fala da abertura do diálogo: onde está o quarto. A Alma do Mundo é composta por uma substância imutável e por outra divisível, e uma terceira substância intermediária. O Demiurgo, então, juntou as três e fez uma só. Começou uma divisão que resulta num elevado pitagorismo. Há uma trindade que busca a quaternidade como Jung viu em seu estudo sobre a Trindade cristã. A Alma recebe suas medidas matemáticas a partir de um cálculo difícil de se reproduzir. Deus então corta em duas no sentido do comprimento e cruza as duas metades uma sobre a outra, resultando num formato de X. Isto resulta numa quaternidade da Alma que une as três substâncias (o Mesmo, o Outro e a Essência) formando uma quarta (o Corpo do Mundo), e gira entrando em contato com as substâncias divisíveis e indivisíveis. A partir daí, em contato com o Outro, produz opiniões através do sensível; em contato com o Mesmo, o inteligível.
Fontes consultadas
Aristóteles, Sobre o Céu.
Carl Gustav Jung, Interpretação psicológica do dogma da Trindade.
The Timaeus of Plato. London, Macmillan and co, 1888 (texto em inglês/grego).