Resenha: a República, de Platão

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Somos como seres que tateiam no escuro durante a noite, quando não há mais o Sol, debatendo uns com os outros a respeito de sombras que passam diante de nossas vistas como em um relâmpago. A caverna seria o mundo, e os prisioneiros todos nós se não fizermos a verdadeira conversão de nossa vista e de nosso corpo para a luz do Sol, o filho do Bem, pois assim vemos que possuímos uma visão clara. Toda a República de Platão é um grande esforço para elevar-nos à verdadeira ciência da dialética, das hipóteses e ao domínio do Inteligível. Além disso, Platão faz neste diálogo uma apresentação de seu projeto educacional que está articulado com sua visão teológica.

Em Platão existe esta busca pela Ideia do Bem, que está acima de todos os bens possíveis neste mundo. Existe algo comum a todos nós e devemos buscá-lo. O universo de Platão não é como o aristotélico, no qual há uma cisão entre o Céu e a Terra. Há uma rejeição de um Realismo no qual existiria um mundo independente de nós, no qual seríamos jogados, e que este mesmo mundo possuiria um significado próprio, e cada qual buscaria seu próprio bem. O mundo sem esta iluminação dos sentidos pelo Filho do Bem seria apenas uma caverna escura sem um maior significado. O reino da opinião (eikasia), que é o mundo da caverna, é aquele próprio dos sentidos, em um nível mais básico, no qual a pessoa, por exemplo, fornece opiniões morais sem base na realidade. O reino da fé (pistis) é típico daquele “refutador” que sai pelo mundo catando “contradições”, ao invés de buscar aquilo que nos une.

Como disse acima, a visão teológica platônica vai ser decisiva para o diálogo. O Deus de Platão não é um enganador, nem alguém que esteja assumindo sempre novas formas. Nem ele pode admitir que um poeta faça versos mentirosos sobre os Deuses. Atribuir vícios humanos aos Deuses como faz Homero é inaceitável para Platão. A corrupção da alma a partir de uma falsa teologia é muito grave, assim como uma educação (Paideia) errada destrói uma cidade. A República tem uma célebre passagem (401) sobre o poder destrutivo da música. Melodias desarmoniosas são nefastas para a educação da criança de do jovem. Platão une o mundo dos sentidos com o mundo Inteligível, e a música corrige em nós uma falta de medida, e traz ao homem, através do sentido da audição, a harmonia dos movimentos celestes (Timeu, 47).

A Paideia platônica envolve a educação do corpo e da alma. A do corpo dá ênfase ao hábito e repetição. A educação em sua República é semelhante para homens e mulheres. Platão estica ao máximo sua hipótese para a educação física das mulheres, do mesmo modo como a comunhão das mesmas e dos filhos, sem medo de cair no ridículo. Não devemos nos admirar com essas passagens que desde Aristóteles tanta polêmica causaram. O filósofo de Platão é alguém que passou pelo teste da vida e do tempo. Ele é alguém selecionado a partir de várias etapas e não é encontrado facilmente. Devemos prosseguir com nosso filósofo e seu projeto educacional.

A mente, segundo Platão, tem um caráter mais elevado e está acima de hábitos e repetições. O filósofo precisa livrar-se “dos pesos de chumbo da família do mutável”. Há uma passagem (475) no qual Platão diferencia o filósofo e os amantes de espetáculos. Os que amam espetáculos são aqueles que só se prendem a partes isoladas dos sentidos, são inquietos, homens de ação e caçam sensações. O filósofo é o verdadeiro amante do espetáculo do Ser e da verdade, ou seja, aquele que vê o todo, a unidade na multiplicidade, que ultrapassou o reino da não-contradição aristotélica, pois essa não existe na natureza nem na metafísica. O filósofo deve buscar o Bem em si, pois ele acredita que o mesmo exista, e nunca se contentar em dizer que existem muitas coisas belas espalhadas pelo mundo que podem diferir de acordo com a opinião de cada um. Quem vê o mundo desta maneira é apenas um amigo da opinião, segundo Platão, e nunca um verdadeiro amigo da sabedoria.

A partir do que já foi escrito, o Mito da Caverna ficará muito mais fácil de ser compreendido. Enquanto a maior parte dos homens contentar-se-ão com as sombras e imagens refletidas na caverna, inclusive considerando que a ciência verdadeira é a que se preocupa com o mundo mutável dos sentidos, o filósofo é aquele que conseguiu sair para fora da caverna e contemplou os objetos como eles realmente são. Uma tentação óbvia seria que o filósofo ficasse deslumbrado com o que viu e resolvesse não mais descer à caverna onde estão os outros. Ora, no Estado imaginado por Platão quem teve acesso à educação fornecida pelo mesmo deve, obrigatoriamente, “descer” e ajudar seus irmãos seja através da educação, seja pela atividade política. Deve sacrificar-se pela cidade. Se o Estado não fez isto, então não há esta obrigação.

A educação pretendida por Platão recusa a ideia de que nossa mente é uma tabula rasa. Não devemos tentar introduzir ciência numa alma que a desconhece. Mesmo que o filósofo tenha contemplado a Ideia. Envolve sim a conversão de todo o corpo e requer tempo, despertar no aluno o desejo pelo Bem, pois sem a conversão do corpo, os olhos, por si sós, estarão voltados para o lado errado. A educação infantil deve ter a preocupação com o corpo, exercitando-o, pois alguém educado apenas com poesias torna-se frouxo. Não deve, porém, envolver castigos corporais, pois nada de proveitoso entra na mente a partir da violência. Como nas Leis ele ensina à gestante que cante para o feto em formação (ali começa a educação), à criança Platão deseja o aprendizado a partir de brincadeiras.

O Filósofo

Platão queria que o filósofo, ao final, tivesse uma semelhança ao Divino, mas sabia que o mesmo estava sujeito a muitos perigos. Há uma ironia (em 545) à vida particular de Sócrates e à vida do filósofo em si, pois este não possui maiores ambições, não tem acesso aos primeiros lugares, sofre muitas cobranças da própria esposa, pois acaba tomado como um moleirão. Desde sempre o filósofo foi considerado um inútil para a cidade. Ao mesmo tempo, Platão afirma que não teremos paz. O filósofo é desprezado porque consideram-no isento de qualquer arte ou habilidade específica. O filósofo (em 488) sente-se perdido no meio do caos da cidade, pois quem está abaixo dele acredita que em uma situação em que não há comando, cada um sinta que possui mais conhecimento que ele. Quem deve comandar é aquele que estude e busque a ciência verdadeira, mas como num Estado em que a verdadeira ciência política não reine, o filósofo é desprezado e cada um julga possuir a arte de governar. Quem buscar a vida filosófica, ensina Platão, não terá a vida física em maior consideração, uma vez que o filósofo vê a totalidade do tempo e do ser, mas deverá ser corajoso, o que é o contrário de ser um selvagem que busca o confronto a qualquer custo.

A ciência da dialética

Aqui Platão demonstra a parte mais importante de seu diálogo. Fomos apresentados à parte mais baixa da busca pela ciência, que é aquela dominada pelo reino da opinião, que está presa aos sentidos a à mutabilidade. Platão apresenta de maneira mais profunda e difícil esta parte em seu diálogo Parmênides. Mas na República ele também consegue ser fascinante. Aqui adentramos na área do conhecimento em si, e já estamos fora da caverna.

O pensamento (Dianoia) está no reino da razão discursiva e dos números, por exemplo. Ainda nos servimos de imagens das Formas como o quadrado, o triângulo, etc. O exemplo fornecido é que neste momento o trabalho já é feito a partir de hipóteses que ainda não precisam de uma análise mais apurada, pois ainda estamos no domínio de verdades lógicas e evidentes para todos como, por exemplo, de que devemos amar o nosso próximo.

O mais alto grau de conhecimento concebido por Platão é o da Noesis. Lá é o reino da dialética e da intuição, no qual todas as hipóteses são elas mesmo hipotetizadas, até que se atinja o que não admite hipóteses, sem nos servirmos de objetos sensíveis, utilizando a dialética para passar de uma Ideia a outra, com todas as consequências que isso envolve. É quando nos elevamos às Formas de maneira direta. Na ética, por exemplo, a única, talvez, que tenha refletido este sentido noético seja a de Schopenhauer, pois sua ética da compaixão não procura a admiração da sociedade, como a aristotélica, nem busca entrar no céu a partir de obras, como a ética cristã. A ética de Schopenhauer vê o outro a partir da luz da espiritualidade.

Já li muitas críticas típicas de filisteus que afirmavam que este método dialético de Platão seria inútil em termos práticos porque nenhum profissional faz seus produtos contemplando a Ideia do Bem. Platão de maneira alguma concebia que sua dialética teria este tipo de utilidade. Quando sua dialética desce das Ideias para o mundo físico ela ilumina nossa visão juntando a luz que provém do Bem, no mundo inteligível, com a luz do mundo físico, gerada pelo filho visível do Bem, que é o Sol. Assim, nossa visão passa a apreender a presença do Divino no sensível, não mais se prendendo às sombras do mundo do devir. No próprio campo da ética, pode-se afirmar que veremos a todos como formas da Ideia do Homem, com uma mente semelhante à Divindade, e não mais julgaremos que alguns não são filhos de Deus por causa de seu comportamento, sexo ou aparência física.

A ideia de ciência em Platão não é a de um acúmulo de dados sensíveis recolhidos de um universo estático, no qual nada de novo surge. É uma ciência criativa e dinâmica, sem que haja uma finalidade a priori, que vai atingindo níveis cada vez mais altos. Ela é antidogmática e, sobretudo, antientrópica, porque ajuda a construir um universo negentrópico.

A sabedoria de Platão foi profunda o suficiente para fazer um cálculo (546) sobre o nascimento das melhores e das piores gerações. Existem ciclos menos brilhantes para a história da humanidade. Ele os denominava de fertilidade e esterilidade, provocadas pelos ciclos naturais da região sublunar, e estão de acordo com a perfeição do Todo.

 O problema da justiça, por exemplo, Platão teve que lançar para o outro mundo, como está exposto no Mito de Er, ao final do diálogo. As punições e as recompensas que cada um terá no outro mundo como ao entrar neste novamente é da decisão de cada um. Deus é isento de culpa diante das escolhas pessoais dos seres humanos. As boas escolhas de nossa vida futura vão depender da iluminação proporcionada pela filosofia. Platão recusa a noção de que virtude é hábito, pois as almas que pensam desta maneira fazem escolhas desastrosas (619).

Platão sabia que não há uma solução definitiva para a questão das injustiças que reinam neste mundo a lançou mão do Mito. A República é um diálogo genial e cujo caráter político é uma antecipação para a preparação de nossa alma para a filosofia. Uma última observação: mesmo sendo filósofo e não profeta, soube colocar em seu diálogo uma espécie de profecia que é o símbolo até hoje da nossa civilização: a do justo que é perseguido e morto.

“Assim sendo, o justo será flagelado, torturado, amarrado; seus olhos serão queimados e, por fim, depois de sofrer todos os males, será crucificado (άναοχινδυλευϑήσεται, que em grego significa “será atado ao tronco”)”

ἐκκαυθήσεται τὠφθαλμώ, τελευτῶν πάντα κακὰ παθὼν ἀνασχινδυλευθήσεταικαὶ γνώσεται ὅτι οὐκ εἶναι δίκαιον ἀλλὰ δοκεῖν δεῖ ἐθέλειν

Platão, A República, 362a

 

 

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