Os diálogos platônicos Protágoras, Sofista e Teeteto são referências fundamentais para compreendermos o modo como Platão entendia a ciência. Há milênios eles nos ensinam a melhor maneira de procuramos o avanço da ciência e do conhecimento, e nos servem de aviso sobre como não fazer ciência, uma vez que dois dos grandes obstáculos que o filósofo enfrenta são: uma “ciência” produzida por uma indução feita a partir dos dados dos sentidos, e o discurso, ou retórica, do sofista sobre o não-ser, que nada mais é do que uma aparência de sabedoria.
Sócrates provavelmente teria tido problemas em outras épocas da humanidade nas quais fazer perguntas era algo perigoso. E não foi no gnosticismo que as perguntas foram proibidas, como afirmava Eric Voegelin, mas nos esquemas históricos. Ao menos Protágoras aceitava que Sócrates fizesse suas perguntas, e Sócrates aceitava que suas ideias fossem rejeitadas. Porém, Platão detectou nos sofistas uma grande ameaça à filosofia e à ciência. Os sofistas, no entanto, nunca desapareceram. Discursos vazios e empolados sobre o nada crescem enormemente em tempos de crise.
Protágoras foi certamente um habilidoso adversário de Sócrates, como vemos em 339c. Os sofistas eram professores que recebiam pagamentos em troca de um treinamento, odioso aos olhos de Platão, para a produção de discursos que servissem a qualquer ocasião. O que importava era, não a busca da verdade, mas convencer a multidão da tese adotada. O que é mais ou menos o que acontece no Direito. No Sofista 225b, Platão denuncia a dialética erísitca dos sofistas. No século XIX, Arthur Schopenhauer reviveu a dialética erística com alguns exemplos que poderiam ser usados numa disputa. Não fez isso, claro, porque acreditava que ela deveria ser usada em ocasiões normais, mas excepcionalmente, apenas. Os sofistas amam a arte da disputa, do debate 225c. O método das disputas, como na Idade Média, não visa criar ciência, mas detectar falhas no argumento do adversário. O sofista, por ser amante de disputas, é também escorregadio, e difícil de ser capturado 226a. Como percebemos atualmente, somente disputar, tentar refutar, ou qualquer outro nome que se dê, não gera nenhum conhecimento válido, porque o sofista, como Protágoras fez com Sócrates 339c, joga para a plateia. Ele quer aplausos e jogar lama no pensamento alheio.
O sofista, numa das definições de Platão, é um caçador de homens 222b. A retórica é a “rede” pela qual os sofistas capturam suas presas. Platão (ao contrário de Aristóteles) desprezava a retórica. Para ele, a retórica não passava de simulacro. O ponto principal para a discordância de Sócrates e Protágoras em 319a-e é a impossibilidade, para Sócrates, de que a virtude possa ser ensinada. Protágoras pretende que a virtude possa ser ensinada (Aristóteles também crê). Toda a ética de Sócrates e Platão, exceção na Antiguidade, não promete nenhuma recompensa de felicidade neste mundo. Protágoras diz que pode ensinar virtude e a arte da disputa mediante pagamento, e acredita que já tenha feito isso com muito jovens em sua longa carreira. O sofista julga que 233a pode transformar qualquer um em mestre em todos os assuntos, porque quem ama as disputas vai ter que falar sobre tudo. Ele promete que, quem estudar com ele, vai estar preparado para “debater” e “refutar” os adversários posteriormente.
A Paideia (educação) proposta por Platão é totalmente contrária a preparação dos estudantes para disputar e polemizar no mundo exterior à Academia. Mesmo quem possui virtude não pode ensiná-la, pior ainda é quem não a tem pretender que possa fazê-lo. A educação platônica, tão bem exposta por Werner Jaeger em sua obra monumental sobre a educação grega, busca muito mais desenvolver a autonomia do aluno. A educação é uma espécie de conversão, como esta passagem a seguir esclarece:
Entretanto, o que mais me interessa na similaridade da caverna são suas implicações educacionais, que são expostas por Sócrates em 518-c. Se isto é verdade, ele diz, então a educação (paideia) não é realmente o que algumas pessoas proclamam ser em suas profissões. O que elas dizem é que podem colocar o conhecimento verdadeiro (epistêmê) em uma alma que não o possui, como se eles estivessem colocando visão em olhos cegos. Em contraste, Sócrates insiste (518c) que o presente argumento indica que a verdadeira analogia para esta morada do poder da alma, e o instrumento pelo qual cada um de nós apreende (katamanthanei), é que um olho só pode ser convertido (strephein) das trevas para luz pelo giro completo do corpo. Ainda assim, este órgão do conhecimento deve ser girado do mundo do vir-a-ser, junto com toda sua alma, como no periacto nas mudanças de cena do teatro, até que a alma esteja preparada para suportar a contemplação da essência (τὸ ὄν) e o mais brilhante reino do ser (τοῦ ὄντος τὸ φανότατον), e é isto o que denominamos o BEM.
John J. Cleary, Studies on Plato, Aristotle and Proclus. P.85 (tradução nossa a partir do original em inglês)
Sócrates, como professor, atua como uma parteira de quem está grávido na alma, sendo que ele apenas auxilia que esta alma dê à luz (Teeteto 150c-d). O professor, na paideia platônica, deve despertar no aluno o conhecimento que já está latente em sua alma, e nunca meramente depositar informações na mente do aluno.
Ora, o reino do sofista, como de todo charlatão e amante de disputas, é o do não-ser. Ao admitir que o não-ser é, Platão afirma estar cometendo um parricídio, pois está “matando” seu pai espiritual, Parmênides 241d. Quando Platão reconhece a existência do não-ser, um grande avanço ocorre em sua filosofia. Ele descobre a morada do sofista. Ali, o que existe é um mundo de aparências 236e, o reino da falsidade. Platão diz que, sem declarar que o não-ser existe e, assim, matar Parmênides, a falsidade não poderia existir. Quando descobrimos o esconderijo do sofista, mais fácil fica de o capturarmos.
Platão admite que capturar o sofista, apesar de tudo, ainda é muito complicado. O sofista é um criador de ídolos, aparências de verdade que ele espalha pelo caminho e numa disputa, o que é capaz de confundir mesmo um filósofo 239d. Ele também é um mestre em distorcer as palavras e dar a elas novos significados. Neste sentido, parodiando Tales, para quem o mundo estava cheio de Deuses, podemos afirmar que o Brasil está cheio de ídolos. O sintoma claro dessa nossa idolatria está na profusão de palavras distorcidas que surgiram nos últimos anos, na linguagem inflada, violenta e de confronto que é a regra atual.
Não deixa de ser surpreendente de fazermos um paralelo sobre o que Jung disse a respeito da Alemanha e o nosso tempo. Em seu livro A Natureza da Psique, Jung viu na linguagem extremamente empolada de Hegel, e em toda a pretensão de sua filosofia, uma irrupção do inconsciente. É como se Hegel tivesse despejado todo o abismo de sua consciência nas linhas de um livro e sobre o povo alemão. Poucos perceberam que o mesmo aconteceu nos últimos anos aqui no Brasil a partir de “pensadores” desqualificados. Criar uma nova língua filosófica, como fizeram Hegel e Heidegger, apesar de que suas filosofias possuem mérito, sem dúvida, é, para Jung é uma “maneira de passar insignificâncias por sabedoria profunda”, e “sintoma de fraqueza.” Jung via na linguagem peculiar de Hegel semelhanças com a linguagem dos esquizofrênicos, pois estes criam “palavras de poder” para conferir à “banalidade o encanto da novidade”, e “submeter o transcendente a uma forma objetiva.”
Um aspecto de enorme importância que vemos no diálogo Sofista, que deve ser entendido tanto pelo filósofo quanto por quem faz ciência, é que, como está em 245d, não se pode falar em ser ou em vir-a-ser sem que tenhamos a visão do todo. Por isso Platão definia o filósofo com aquele que vê o todo. Não se pode falar em perfeição, bem e mal, evolução, progresso, por exemplo, sem que a totalidade esteja definida. Progresso no quê, evolução por quê?, assim podemos pegar o sofista por apegar-se a uma parte da realidade.
Como é usual nos diálogos de Platão, a dialética ascende em hipóteses cada vez mais elevadas. Cabe agora ao filósofo definir o que é ser, pois o objetivo supremo da educação é a nossa conversão para o reino do ser. Uma definição de ser por parte de Platão é a de que ele é potência 247e, pois tudo aquilo que pode causar mudança ou, ele mesmo sofrer mudança, é. Platão ensina que o filósofo deve recusar a seguir tanto Parmênides (imobilidade do ser) quanto Heráclito (vir-a-ser permanente). Como foi dito acima, fora deste reino do ser não podemos dizer nem que ele é, nem que está num perpétuo vir-a-ser. O verdadeiro filósofo, segundo Platão, tem este reino na mais alta estima, e não procura fazer afirmações vazias para chegar, após algum tempo, a doutrinas dogmáticas 249c.
Uma análise sobre o conhecimento feita no Teeteto 151e procura definir se o conhecimento é percepção sensível. O sofista, que a todo momento discursa sobre uma infinidade de coisas, ora que algumas são, e outras vezes que estão num vir-a-ser, tem apenas uma percepção momentânea sobre as coisas, por isso seu discurso á apenas aparentemente sábio. Ele está embevecido em sua própria oratória criadora de ídolos que o protegem. Aqui (Teeteto152a), Platão rejeita o famoso aforismo de Protágoras que “o homem é a medida de todas as coisas”, pois aqui é o domínio da percepção sensível. Da mesma maneira, Aristóteles vai descartar a Ideia do Bem de Platão para dizer que o bem é diferente para cada um e, como um filisteu, afirmar que as Ideias não são úteis no cotidiano.
Platão (Teeteto 152d) também faz uma observação esclarecedora sobre nossa busca pela definição do ser. Sem esta “base”, se tudo muda e flui, nada pode ser dito que é grande ou pequeno, que é quente ou frio, está em cima ou embaixo, etc. Recusado o ser, o mundo tornar-se-ia um fluxo infernal de dados dos sentidos contraditório, e nenhuma ciência seria possível no plano físico.
Nossa tentativa de definir o que é o ser, que é a base para qualquer ciência ou educação, nos provoca espanto. A filosofia nasce da perplexidade (Teeteto 155d). Por mais que Aristóteles também tenha dito isso, fica difícil verificar a perplexidade em sua filosofia sistemática, a não ser em seus diálogos iniciais. Nos filósofos medievais, com exceção de João Escoto Erígena e Nicolau de Cusa, a verdade já está colocada. Se o nosso mundo é melhor dos possíveis, como para Leibniz, não é possível filosofar, só agradecer e contemplar. Não é possível considerar que algum dia Hegel ficou perplexo. E Platão afirma quer toda a filosofia nasce da perplexidade.
No processo de ascensão da dialética, Platão afirma que descobriu o que é o filósofo (Sofista 253c). Isso explica por que não há um diálogo denominado Filósofo. Cabe ressaltar que a problemática que Platão trata aqui será melhor esclarecida em seu desafiador diálogo Parmênides. O filósofo não se guia pela aparição, porque o perceber não é conhecer (Teeteto 158 a) pois, ao contrário do sofista, que está sempre preso do que parece ser e do que vem-a-ser, o filósofo não cai na armadilha da mistura e conhece diretamente a Ideia (Teeteto 253d), superando a dificuldade da unidade na multiplicidade.
Platão reconheceu a contradição que implica o não-ser, fonte da mentira, superando Parmênides. O não-ser é o reino das aparências, do sofista, que é sempre um empirista, ou seja, ele é prático e obcecado pela experiência (Sofista 254 a). O sofista é um ser que vive nas trevas da experiência sensível, e nunca ascende ao reino da luz, que é o mundo das Ideias. A experiência sensível, diz Platão, é algo que o ser humano compartilha com os outros animais e, se conhecimento fosse percepção, não haveria necessidade de educação(Teeteto 186c). Nosso filósofo, e isto é importante até para o desenvolvimento posterior da teologia cristã, reconhece o direito de existência do não-ser (Sofista 258b), e declara que ele não é o oposto do ser, mas apenas diferente do mesmo. No neoplatonismo há toda uma definição de que o mal não tem o direito a existência, porque é apenas uma ausência de bem.
Uma das grandes desgraças que temos que suportar pela boca dos sofistas de todos os tempos é aquilo que Platão denuncia no Sofista 259e. Como tem seu discurso reverberado entre seus pares, ignorantes do mesmo quilate, promovem a separação de partes do todo em seu discurso, o que gera uma anticiência, ou uma babel diabólica. O filósofo, pelo contrário, vai fazer em seu discurso o “entrelaçamento recíproco das Formas”.
Toda esta árdua tarefa, apesar de todo o seu esplendor, provoca ainda a incompreensão da maioria das pessoas sobre a importância do filósofo. Ele sofre escárnio geral, anda com a mente e os olhos fixados nas estrelas, por isso, como Tales, caem em um buraco, para o divertimento de quem vê. Todas as riquezas e os fatos ordinários do mundo, valorizados pelas outras pessoas, lhes são estranhos. Como, apesar de todo seu esforço para compreender o universo, isso sempre estará fora de alcance, e que sempre haverá algo oposto ao Bem, Platão (Teeteto 176b) afirma que o filósofo deve tentar escapar o mais rápido deste mundo, e tornar-se semelhante à Divindade.