O presente artigo procura estabelecer uma ligação entre os pensamentos de Nicolau de Cusa e Karl Marx. O elo de ligação entre os dois seria o espírito neoplatônico de produção da negentropia ( que é a negação da entropia) para a construção de uma sociedade e de uma economia que fizessem brotar no ser humano todas as suas capacidades. O trabalho é o elemento fundamental para a criação da negentropia. Foi feita uma abordagem sobre aspectos econômicos e metafísicos.
A Bioética é uma área de vastas possibilidades e que permite estudos ainda pouco explorados pelos filósofos e outros pensadores. Como coloquei no artigo sobre o Transumanismo, onde procurei demonstrar que a ideia que temos de evolução e de progresso está equivocada, mas que existe uma outra maneira do ser humano evoluir. Neste texto tentarei apresentar e colocar uma importante variação do tema da Sintropia, haja visto que, para que novas possibilidades surjam, a economia deve ser levada em consideração.
Quando lemos um importante livro como O Princípio Responsabilidade, de Hans Jonas, uma das maiores referências em relação à Bioética, percebemos que o autor tenta nos alertar para os possíveis problemas que o planeta e os seres humanos correm, se algumas de nossas práticas e costumes não forem alterados. Trata-se de uma ética que visa preservar o sistema para que as gerações futuras não sejam comprometidas; que as mesmas alternativas que temos atualmente estejam disponíveis paras nossos descendentes. A obra de Hans Jonas permite uma grande utilização quanto à ética médica, especialmente quando colocamos o problema da ampliação da vida humana por meios científicos. Porém, algo que é muito mais abordado pelo autor, é a preocupação -talvez com um tom um pouco alarmista demais- com o meio ambiente de nosso planeta.
O ponto principal do argumento de Jonas sobre o futuro da humanidade é o contraponto que ele faz em relação ao marxismo. Jonas escreve contra a existência de utopias, ou de qualquer ideia que tente alavancar as condições da vida humana. Não há dúvida de que ele é bastante reacionário/conservador em muitos momentos da obra. Jonas está convencido de que vivemos numa entropia. Aqui estão suas palavras:
a impossibilidade de contornar essa causalidade em qualquer invenção técnica -ou seja, ter uma coisa e evitar outra, separando a abundância do consumo energético e suas consequências térmicas- é em última análise semelhante à impossibilidade de construir um perpetuum mobile: a inflexível lei de entropia, de acordo com a qual se “perde” energia toda vez que ela é consumida, toda energia degenera ao fim em calor e o calor se dissipa, compondo com o ambiente um valor médio. Para a lei da termodinâmica, esses termos são inegociáveis. (2006, p. 306)
Na entropia, as causas sempre precedem seus efeitos, e a tendência é a energia se dissipar no meio ambiente. A longo prazo, o sistema perde força. O Big Bang é um clássico exemplo de entropia, assim como é a crença cristã de que, depois de uma Criação, caminhamos aceleradamente para um apocalipse destruidor.
Na negentropia, os efeitos são mais importantes do que as causas, e a energia fica concentrada em lugares menores (não se perde), e o sistema está ganhando força. Em meu trabalho já referido, no nível metafísico, a Causa é mais importante, mas o sistema ganha força pela nossa atuação através de uma conversão demiúrgica.
Como para o filósofo Hans Jonas a entropia é um fato da natureza, não é de nos surpreendemos sobre o porquê o marxismo e as utopias serem seu alvo. O marxismo é otimista, utópico, especialmente com Ernst Bloch, que ele tanto cita, antimalthusiano e contrário à lei da entropia. Mas sobre isso escreveremos mais à frente.
Se Jonas tem preocupação quanto ao corpo humano e a ética de uma ciência que busca modificá-lo para estender nossas vidas, não posso compreender a inversão que ele realiza sobre uma ética para o futuro. Ele se preocupa muito mais com a natureza e o planeta do que com os seres humanos dos países pobres. É óbvio que isso pode estar escondido sob o véu de um futuro melhor para nossos descendentes, mas o futuro deve ser construído num agora.
Infelizmente, o livro é um pouco datado com relação ao alarmismo de Jonas sobre uma suposta “explosão demográfica”, claro, notavelmente, no Terceiro Mundo. A suposta “explosão” jamais aconteceu, mas Jonas lamenta de que populações maiores requerem sempre mais investimentos e tecnologias, que por sua vez necessitam alterar cada vez mais a natureza. Um problema que nos intriga ao lermos Hans Jonas é por que ele concentra suas observações sobre os países em desenvolvimento? A resposta é que, para ele, não há como países em desenvolvimento alcançarem o mesmo nível industrial da Europa e Estados Unidos sem consequências para o planeta. Seu pensamento revela-se falso porque países mais avançados, que possuem populações maiores, e com densidade demográfica bem mais elevadas do que o Brasil, por exemplo, possuem menos problemas ambientais do que nós. Ele, que tanto ataca a utopia, revela ser um utópico (irrealista), quando deseja que as fábricas das nações industrializadas se transfiram para os países do Terceiro Mundo, e perigoso quando diz que o consumo das nações avançadas deva ser brecado à força, se necessário (2006, p. 294).
Em determinado momento (2006, p. 255), Jonas ironiza, desnecessariamente, o slogan soviético levado adiante por Lênin de que o “socialismo é eletrificação”. Ironiza a propaganda soviética sobre construções de estradas e a glorificação das máquinas. Aqui, Jonas se mostra bem pouco filosófico e mal informado sobre a história. No livro A Revolução Industrial da Idade Média, Jean Gimpel nos ensina sobre a “ingenuidade” dos medievais a partir do ano 1000, quando, segundo o autor, a Europa movimentou mais pedras do que na construção das pirâmides do Egito, e provocou um desmatamento monumental para abrir espaço para as cidades que conhecemos hoje. Era o início daquela idade fáustica da qual escreve Spengler, ou da prometeica, que o economista estadunidense Lyndon Larouche tanto louva. A Europa com população decrescente (ou estabilizada) da Alta Idade Média, cercada por florestas e animais selvagens, era o reino da fome, das doenças, da mortalidade infantil, do feudalismo, etc. Já a Europa com população crescente a partir do século XII deixou para trás o risco do desaparecimento que viveu sob as invasões bárbaras. Quando Lênin levava eletricidade às vastidões da Rússia, levava ao mesmo tempo civilização, remédios e educação, pois a maior preocupação da ciência deve ser com os seres humanos. Jonas afirma que a Terra demonstra sinais de esgotamento. Jonas é aristotélico em espírito, para quem a potência é a fonte do mal e da desordem. Aristóteles é o filósofo conservador por natureza, pois quer que a população seja controlada, mas não a propriedade! Um verdadeiro Liberal, sem dúvida. Jonas escreveu este livro em 1979, e pessoalmente recordo de revistas da década de 1980 mostrando as ruas de Pequim com milhares de chineses de bicicletas indo para o trabalho e em suas tarefas diárias. Se dependesse de Hans Jonas, teriam permanecido assim. Mas agora só andam de automóvel, e nosso planeta continua como sempre esteve.
Aspectos econômicos: Karl Marx
Para que este ganho de energia, individual e coletivo, seja possível, uma economia justa, que promova o valor do trabalho e o potencial humano, faz-se necessária. Acima foi dito que Hans Jonas demonstrava preocupação pelo caráter otimista e utópico do marxismo. Jonas acredita na Lei da Entropia, e é pessimista quanto ao futuro da Terra. O marxismo representa sua antítese.
Karl Marx possui um pensamento contraditório, ainda pouco explorado por seus críticos. Ele ignora o pensamento econômico dos filósofos e economistas alemães, como Leibniz e Friedrich List. Lyndon Larouche aponta esta falha em Marx. Ele praticamente só se move no pensamento econômico dos ingleses, e não sai dali. Marx também toma por antecessor Aristóteles, que era conservador, pouco voltado para o progresso, e um defensor da propriedade privada. Aristóteles também rebaixava a dialética, e a substituiu por lógica. Não admitia existência da contradição. Mesmo assim, o pensamento de Marx e seus sucessores é parecido com alguns temas da filosofia de Nicolau de Cusa, que abordaremos no final, e é otimista no sentido de que o trabalho humano pode nos levar a um progresso que não tem um fim pré-determinado.
O espírito de progresso de Karl Marx foi criticado por Hans Jonas na seguinte passagem:
muito mais tarde, e de forma nada infantil, o malthusianismo foi “condenado” oficialmente como doutrina da classe burguesa, e Moscou proclamou -bem antes da China- que uma ciência e técnica socialistas, voltadas para a produção de alimentos, seriam capazes de acompanhar qualquer crescimento populacional. Na verdade, repudiava-se explicitamente a ideia de que houvesse um limite natural imposto ao engenho humano. (2006, p. 255)
Neste sentido, Marx possui uma aproximação grande com o ideal cristão de uma população crescente, e também com o de Platão, que queria limitar a propriedade, mas não o crescimento populacional. Já Aristóteles era um liberal/burguês avant la lettre, pois dava primazia à propriedade.
Todo o receio que Hans Jonas possui a respeito da Terra é desnecessário, pois o principal é o fator humano. A Terra funciona excepcionalmente bem, assim como a natureza; a sociedade humana é que é altamente problemática. Karl Marx e Engels acreditavam que a Terra possuía todos os elementos para suportar uma população crescente, e a técnica e a ciência, unidos a uma valorização do trabalho, conseguiriam sempre avançar rumo a um progresso constante.
Sabemos que Karl Marx ignorou Leibniz, então é útil mencionarmos aqui que, em um ensaio de 1671, Leibniz apresentou brevemente seu programa econômico. Monopólios seriam combatidos, o sistema que permite que a riqueza de alguns poucos seja mantida pelo sacrifício da maioria deveria ser eliminado, o livre-comércio é considerado uma falsificação e haveria um programa para recuperar financeiramente aqueles que tombaram na disputa. Cada um, portanto, com um mínimo necessário para realizar a tarefa de fazer progredir a sociedade para melhor servir aos propósitos de Deus.
Esta sociedade no qual o trabalho, agora isento de produzir mais-valia e a alienação entre o produto gerado e o trabalhador que o produziu, é o objetivo de Marx. Uma verdadeira ética que projete um futuro justo para a humanidade deve colocar o ser humano e o trabalho em primeiro lugar. O trabalho em si deveria ser uma atividade prazerosa para todos nós, e se não o é para grande parte das pessoas é porque algo está errado e é passível de correção.
Em seu livro Ação Humana, Ludwig von Mises ironiza o desejo de Marx e seus seguidores de tornar o trabalho em algo prazeroso. O trabalho ali é encarado como um sacrifício que o trabalhador enfrenta para conseguir algum tipo de recompensa imediata (2010, p.174). Seríamos quase como o cão de Pavlov. Mises, que nos dias atuais é muito valorizado por religiosos (no caso dos católicos é um caso curioso), prega um tipo de liberalismo tão radical que fica impossível construir o tipo de sociedade que Leibniz e Marx ensinam, assim como de ter uma visão do trabalho humano como Nicolau de Cusa e os neoplatônicos imaginavam.
Mises nega a igualdade dos seres humanos que, segundo ele, a ciência natural demonstrou, de maneira irrefutável, ser falsa (2010, p. 216). O liberalismo de John Rawls tomaria esta afirmação como estapafúrdia, com certeza. Sua mente nominalista ao extremo chega ao cúmulo de afirmar (2010, p. 70) de que é o carrasco, e não o Estado, que executa o criminoso. Poder-se-ia dizer que, na verdade, quem mata é o machado…
O entendimento que Mises possui de metafísica é bastante tosco, pois conhecia mal a filosofia. Ele tenta refutar (2010, p. 99) os teólogos e metafísicos que viam na Divindade uma atividade produtiva. Ali ele mistura um tipo de sensualismo com agnosticismo kantiano pouco compreensível. Não entra em sua cabeça que o trabalho deve existir para o engrandecimento da humanidade. Um Deus que é ativo é uma contradição inexplicável para ele devido à sua concepção equivocada de trabalho.
Hans Jonas demonstra preocupação em seu Princípio Responsabilidade com a crescente especialização do trabalho e com o uso de máquinas, que provocam cada vez mais o aparecimento de empregos dispensáveis. No entanto, Jonas elogia o capitalismo e o liberalismo por terem “vantagens” sobre outros sistemas econômicos e políticos. Talvez Jonas devesse ter refletido como uma sociedade que encara o trabalho como apenas um meio para obter recompensas, na qual existem “indivíduos”, e o Estado é uma quimera, poderia ter criado empregos com sentido?
Em nosso tempo, a quantidade de empregos que aparecem sem maior significado é impressionante. Os custos em termos de saúde física e, principalmente mental, são assustadores. Na citação a seguir, Marx exibe um quadro de uma alienação extrema, que nada mais é o retrato da maior parte dos “empregos” oferecidos para nós hoje em dia:
Adam Smith estava fundamentalmente certo com seu trabalho produtivo e improdutivo, certo do ponto de vista da economia burguesa. O que os outros economistas alegam contra isso ou é um monte de besteiras (por exemplo: Storch, e Senior ainda mais piolhento), a saber, que toda ação tem algum efeito, por conseguinte, confusão de produto em seus sentidos natural e econômico; nesse sentido, um patife é também um trabalhador produtivo, uma vez que ele produz indiretamente livros sobre direito criminal; (esse raciocínio é ao menos tão correto quanto o de chamar um juiz de trabalhador produtivo porque protege contra o roubo). Ou então, os economistas modernos se converteram em tais sicofantas do burguês que pretendem convencê-lo de que é um trabalho produtivo quando alguém lhe cata piolhos na cabeça ou lhe esfrega o cacete, porque o último movimento talvez lhe deixe sua cabeça dura -estúpida- mais disposta para o trabalho no escritório no dia seguinte. Por isso, é absolutamente justo -mas, ao mesmo tempo, igualmente característico – que, para os economistas consequentes, os trabalhadores empregados em lojas de luxo, p.ex, sejam trabalhadores produtivos, embora os sujeitos que consomem tais objetos sejam explicitamente fustigados como perdulários improdutivos. O fato é que esses trabalhadores são efetivamente produtivos à medida que aumentam o capital de seu patrão; são improdutivos com respeito ao resultado material de seu trabalho. Na verdade, esse trabalhador ‘produtivo’ está tão interessado na merda que tem que fazer quanto o próprio capitalista que o emprega e que não dá a mínima para a porcaria. Considerado com mais precisão, entretanto, descobre-se que a definição verdadeira de um trabalhador produtivo consiste no seguinte: um ser humano que não necessita nem exige mais do que o estritamente necessário para capacitá-lo a conseguir o maior proveito possível para o seu capitalista. (2011, p. 213)
Este tipo de trabalho que destrói a psique do homem e da mulher em nada colaboram para uma sociedade organizada. Para quem considera que só se trabalha para conseguir uma satisfação imediata, não tendo o trabalho um objetivo mais elevado, nada muda. Marx, entretanto, foi incapaz de levar em consideração as consequências de um trabalho que só serve para alimentar um capitalista em escala muito maior. Friedrich List já havia denunciado que o livre-comércio, tão louvado pela Inglaterra, transformava as outras nações em meros empregados fornecedores de matérias-primas para o grande patrão das ilhas britânicas. Não adianta Jonas propor, de maneira irracional, que as nações em desenvolvimento fiquem meramente dependentes da caridade das nações industrializadas. Como Marx ficou preso na teia do pensamento inglês, não viu que a fase posterior do capitalismo foi propagar livre-comércio em todas as partes do globo, com o auxílio das elites feudais locais, impedindo o surgimento da indústria. Reparem no Brasil, que já teve uma presença maior da indústria, mas que era obsoleta quando comparada às outras nações, e até tinha um comércio de rua, com lojas menores com algum dinamismo, abriu seu comércio e virou apenas um grande plantador de soja.
O mais perverso é que na entropia imaginada por Jonas e Mises sobra sempre para o ser humano e para o trabalhador. Jonas afirma que a Terra está em perigo devido à escassez de produtos e recursos naturais. No pensamento econômico de Mises, na crise, a culpa do trabalhador não encontrar emprego é devido ao fato dele exigir um salário “alto” (2010, p. 658). Ele escreve ainda que, se existe desemprego, é porque o trabalhador pode “esperar” por algo melhor, e que, se quiser verdadeiramente trabalhar, basta reduzir suas “exigências” (2010, p. 683). Todo o livro Ação Humana é uma verdadeira apoteose de louvação dos detentores do capital contra os trabalhadores.
Uma boa confissão de Mises é fornecida na página 761, quando ele louva Malthus como uma das grandes conquistas do pensamento e um dos pais da Teoria da Evolução. Pelo que ele escreve na sequência, confirma-se a tese de que, para alguns liberais, o capitalismo é a melhor pílula anticoncepcional que existe, e que se os povos de “raça branca” estão com medo da explosão populacional das nações subdesenvolvidas, basta introduzir ali um pouco de capitalismo.
O objetivo da ciência econômica, como da ciência no geral, deveria ser o de promover facilidades para suportarmos uma população que cresce a cada dia. Promover o bem e as recompensas por um trabalho realizado com prazer, e não criar uma situação na qual as pessoas passariam a pensar 1000 vezes antes de ter um filho. Marx e Engels sentiam verdadeira repulsa por Malthus, que era o representante clássico do pensamento burguês.
No Brasil, graças à gigantesca propaganda da televisão e de ongs estrangeiras, a taxa de natalidade caiu drasticamente, assim como a qualidade e a quantidade dos empregos nas últimas décadas. Quem olha o mapa do Brasil com fotos noturnas, percebe que a população está toda concentrada no litoral. Somos um mapa do Chile em termos de população. A maior parte do território não está ocupado. Há uma grande dispersão de energia que poderia ser usada para o desenvolvimento de nosso país. Mas o sonho de nossa (falsa) elite é nos transformar num enorme pasto.
Marx viu, não sem ironia, que os capitalistas gostavam de fazer alarde sobre um suposto excesso de população. Também adoravam -e ainda adoram- fazer apologia da poupança. A queda na taxa de natalidade só em teoria é boa para o capitalista e para o país. Quando a taxa de natalidade cai, diminuindo o número de trabalhadores disponíveis, a tendência é do aumento do salário. Perde-se mão-de-obra reserva, e há pouca margem de manobra para o capitalista. Sobre isso, Marx escreveu:
A própria acumulação -e a concentração que ela implica- é o meio material de aumentar a produtividade. Nesse acréscimo dos meios de produção se inclui o crescimento da população trabalhadora, a formação de população adequada ao capital excedente e que até exceda sempre de modo geral suas necessidades, em suma, uma superpopulação de trabalhadores. Excesso momentâneo de capital em relação à população obreira que comanda teria duplo efeito. De um lado, aumentaria progressivamente a população trabalhadora, elevando os salários, por conseguinte suavizando as condições que destroem, dizimam os filhos dos trabalhadores e facilitando os casamentos; por outro lado, com o emprego dos métodos que produzem a mais-valia relativa (introdução e aperfeiçoamento das máquinas), geraria com rapidez ainda maior superpopulação relativa, artificial, que por sua vez é o viveiro onde realmente se procria gente de maneira rápida, pois na produção capitalista a miséria produz população. Ao progredir o processo de produção e de acumulação, cresce necessariamente também a massa de trabalho excedente de que o capital se apropria e pode se apropriar, e, por conseguinte, a massa absoluta do lucro obtido pelo capital da sociedade. (2008, p. 289)
Nos países nos quais a natalidade é baixa, obrigatoriamente a imigração precisa existir, senão a elevação dos salários teria que ser muito alta para convencer os locais a realizarem os trabalhos mais desprezados. Como no Brasil o número de estrangeiros é baixo, a única solução para o “problema” do aumento recente da massa salarial é criar leis que reduzam o salário e os direitos dos trabalhadores.
Os direitos previdenciários, que permitem uma solidariedade entre as gerações e evitam problemas sociais mais sérios quando o ser humano está vulnerável, como é no caso da velhice, é combatido pelo Estado quando esse entra em um estágio de selvageria. Dificultar as aposentadorias, forçando uma poupança individual prematura, vai ter o seguinte resultado, segundo Marx:
nesse caso, o trabalhador só poderia fazer do valor de troca seu próprio produto da mesma maneira que a riqueza em geral pode aparecer como produto exclusivo da circulação simples, onde são trocados equivalentes, a saber, sacrificando a satisfação substancial a favor da forma da riqueza, logo, retirando menos bens da circulação do que os que lhe dá, por meio da abstinência, poupança, corte de seu consumo. Essa é a única forma possível de enriquecer que é posta pela própria circulação. A abstinência poderia aparecer ainda na forma mais ativa, que não está posta na circulação simples, na qual o trabalhador renuncia ainda mais seu repouso, renuncia completamente ao seu ser como algo separado de seu ser como trabalhador e, na medida do possível, só é como trabalhador; por conseguinte, renova com mais frequência o ato da troca, ou estende-o qualitativamente ainda mais, ou seja, pela laboriosidade. Por essa razão, também na sociedade atual a exigência de laboriosidade e, especialmente, também de poupança, de abstinência, é requerida não dos capitalistas, mas dos trabalhadores, e precisamente pelos capitalistas. A sociedade atual faz justamente a exigência paradoxal de que deve renunciar aquele para quem o objeto da troca é o meio de subsistência, não aquele para quem o objeto da troca é o enriquecimento {…} o trabalhador deve poupar, e muito alarde foi feito em torno das caixas de poupança etc. (neste último caso, é admitido inclusive pelos próprios economistas que sua verdadeira finalidade também não é a riqueza, mas só uma distribuição mais adequada dos gastos, de maneira que, na velhice ou em caso de doenças, crises, etc., os trabalhadores não dependam de instituições de caridade, do Estado ou da mendicância… em uma palavra, particularmente para que não se tornem um ônus para os capitalistas e vegetem às custas deles, mas sim para a própria classe trabalhadora). (2011, p. 223)
O Estado que ajuda aquele que tombou, como imaginado por Leibniz, é uma verdadeira heresia para quem pensa dessa maneira. Se, apesar de tudo, Hans Jonas ainda defende como o valor supremo a existência continuada do ser humano sobre a face da Terra, deveria exibir uma preocupação ética a respeito de um sistema que, necessariamente, provoca a diminuição da natalidade onde quer que se instale. O egoísmo mais brutal é o resultado previsível quando temos empregos precários, baixos salários, exigência de poupança para não passarmos fome no futuro. Não é possível investimentos criativos pessoais, porque a poupança seria consumida, e qualquer ganho de produtividade, ou de crescimento pessoal, seria perdido como energia no mercado de trabalho. Marx afirma:
Ao fazer da riqueza a sua finalidade, em lugar do valor de uso, o trabalhador, portanto, não só não alcançaria nenhuma riqueza, mas perderia além disso o valor de uso da sua compra. Pois, de modo geral, o máximo de laboriosidade, de trabalho, e o mínimo de consumo -e esse é o máximo de sua renúncia e de seu poder de fazer dinheiro- não poderiam levar a mais nada senão a que o trabalhador recebesse um mínimo de salário por um máximo de trabalho. Com seu esforço, o trabalhador só teria reduzido o nível geral dos custos de produção de seu próprio trabalho e, em consequência, o seu preço geral. Somente como exceção pode o trabalhador, com força de vontade, força física e perseverança, avareza etc., transformar sua moeda em dinheiro, como exceção de sua classe e das condições gerais de sua existência (Dasein). Caso fossem todos, ou em sua maioria, superdiligentes, os trabalhadores não aumentariam o valor de sua mercadoria, mas tão somente sua quantidade; portanto, aumentariam as exigências que lhes são feitas como valor de uso. Se todos poupassem, uma redução geral dos salários iria colocá-los em seu devido lugar, pois a poupança generalizada indicaria ao capitalista que seu salário está muito elevado. (2011, p, 224)
Logo em seguida
o trabalhador pode meramente conservar ou tornar rentáveis suas economias à medida que as deposita em bancos, de modo que posteriormente em épocas de crise, perde seus depósitos, após ter renunciado a todos os prazeres da vida nos períodos de prosperidade para aumentar o poder do capital, não para si. Aliás -na medida em que tudo isso não passa de clichê hipócrita da ‘filantropia’ burguesa, que consiste afinal em iludir os trabalhadores com ‘desejos piedosos’-, cada capitalista certamente exige que seus trabalhadores poupem, mas somente os seus, porque se defrontam com ele como trabalhadores; mas de maneira o resto do mundo dos trabalhadores, pois estes se defrontam com ele como consumidores. Apesar de todas as fraseologias ‘piedosas’, o capitalista procura por todos os meios incitá-los ao consumo, conferir novos atrativos às suas mercadorias, impingir-lhes novas necessidades etc (2011, p. 225).
Vários fatores podem causar esta dispersão de energia produtiva no mercado de trabalho: se, como afirma Jonas, a Terra passa por um esgotamento, e o nível de consumo tem que ser restringido, o colapso das indústrias seria o resultado; colocar como prioridade o meio-ambiente, partindo do princípio que ele está ameaçado, e que, portanto, o nível de tecnologia necessita de redução, provocaria uma queda no investimento e possíveis desastres ambientais. Precisamos de mais tecnologia, e não de menos; preocupar-se mais com o mercado em si do que com as pessoas. A análise econômica leva em consideração apenas os ganhos de quem está no topo, não existindo preocupação com o nível de desemprego e suas consequências familiares.
Na área da bioética, as consequências desse desemprego são sentidas. Menos pessoas passam a pagar por planos de saúde, as doenças se propagam, principalmente as mentais. As pessoas que ainda estejam empregadas passam a ser afetadas pelo familiar adoecido. Suicídios aumentam. O pior, no entanto, é o clima de cinismo que se espalha pelo país quando o trabalho passa a ser desvalorizado, da mesma maneira que os estudos. Tudo passa a ser nivelado por baixo.
Analisando, porém, o monstro alimenta a si próprio, pois a necessidade de sobrevivência puxa novamente os que foram expulsos novamente para o mercado. Os salários baixos permanecem, porque você precisa trabalhar para não adoecer, e também trabalhar para pagar as despesas com as doenças que você vai adquirir em seu trabalho precário.
Rosa Luxemburgo e Friedrich Engels
Estes dois grandes herdeiros de Karl Marx nos ajudaram a enfrentar o grande fantasma da economia burguesa que é o malthusianismo. Igualmente, podem nos auxiliar a enfrentar um perigo muito mais real do que um suposto planeta ameaçado: o capital e seus mistérios.
A mentalidade malthusiana, pessimista por natureza, crê que os recursos do planeta são escassos e a “bomba” populacional é o maior problema a se enfrentar. O erro está em levarmos em consideração as impressões do sentido, que nos faz parecer que a Terra está superpovoada em qualquer época, e também em tentar usar lógica para decretar que o planeta não aguenta mais tanto ser humano. Na verdade, quem poderia declarar que chegamos a um limite e a uma contradição insolúvel? Rosa Luxemburgo afirma:
L’humanité était prise en apparence dans une contradiction qu’il fallait résoudre pour que l’évolution puisse se poursuivre.
A Humanidade está presa aparentemente em uma contradição
que precisa ser resolvida para que a evolução possa continuar.
[…] L’individu, qui se trouve devant une contradiction dans sa vie privée, ne peut plus faire un pas. On admet tellement, même dans la vie quotidienne, que la contradiction est quelque chose d’impossible, qu’un accusé qui se contredit devant le tribunal passe par là même pour convaincu de mensonge et les contradictions peuvent le mener en prison ou à la potence.
O indivíduo, que se vê diante de uma contradição em sua vida privada, não pode mais dar um passo. Admitimos assim, que mesmo na vida quotidiana, a contradição em qualquer coisa é impossível; que mesmo um acusado que se contradiga diante de um tribunal passe mesmo por convicto de mentira, e as contradições possam levá-lo à prisão ou à forca.
[…] Mais si la société humaine dans son ensemble s’embrouille continuellement dans des contradictions, elle n’en va pas pour autant à sa perte, au contraire, ce sont les contradictions qui la font avancer. La contradiction dans la vie de la société se résout toujours en évolution, en nouveaux progrès de la civilisation. Le grand philosophe Hegel a dit : « La contradiction est ce qui fait avancer. »
Mas se a sociedade humana como um todo está permanentemente confusa em suas contradições, elas não podem fazê-la perder; ao contrário, são as contradições que a fazem avançar. A contradição na vida em sociedade sempre resulta em evolução, em um novo progresso da civilização. O grande filósofo Hegel disse: “A contradição é que faz avançar.”(tradução nossa a partir da edição francesa)
Nossa recusa em enfrentar este tipo de contradição pode exigir que paguemos um preço demasiado elevado de cairmos novamente em uma economia do tipo feudal com crescimento zero, como já afirmou diversas vezes Lyndon Larouche. Novos investimentos, aumento da população, demandas inéditas, claro exigem mais recursos e outros desafios. Mas desde o início foi assim, e não é permitido a ninguém decretar o fim da história.
Quando, em momentos de crise, afirma-se que devemos nos tornar “empreendedores”, nasce um paradoxo: se todos formos empreendedores, quem irá trabalhar para nós? A palavra empreendedor só pode ter sentido em uma economia no qual a maioria trabalhe para uma minoria. Rosa Luxemburgo percebeu muito bem uma contradição do capitalismo em seu livro Introdução à Economia Política
L’évolution va dans ce sens. Cependant, cette évolution enferme le capitalisme dans la contradiction fondamentale : plus la production capitaliste remplace les modes de production plus arriérés, plus deviennent étroites les limites du marché créé par la recherche du profit, par rapport au besoin d’expansion des entreprises capitalistes existantes. La chose devient tout à fait claire si nous imaginons pour un instant que le développement du capitalisme est si avancé que sur toute la surface du globe tout est produit de façon capitaliste, c’est-à-dire uniquement par des entrepreneurs capitalistes privés, dans des grandes entreprises, avec des ouvriers salariés modernes. L’impossibilité du capitalisme apparaît alors clairement.
A evolução está nesta direção. Ainda assim, essa evolução aprisiona o capitalismo em uma contradição fundamental: quanto mais a produção capitalista substitui os modos de produção mais atrasados, mais tornam-se estreitos os limites dos mercados criados para a busca do lucro, em relação à necessidade de expansão das empresas capitalistas existentes. A coisa ficará mais clara se nós imaginarmos por um instante que o desenvolvimento do capitalismo seja tão avançado que em toda a superfície do globo a produção seja feita de maneira capitalista, ou seja, unicamente por empresários capitalistas privados, em grandes empresas, com uma força de trabalho moderna. A impossibilidade do capitalismo nos aparece claramente.(tradução nossa a partir da edição francesa)
O capitalismo é um sistema que favorece extraordinariamente as exceções. Trabalhos considerados comuns costumam ser mal pagos, apesar da propaganda de que todos são importantes. A contradição novamente surge, pois se todos fizessem trabalhos -ou empreendimentos- diferenciados, a exceção deixaria de existir, portanto, todos deveríamos ganhar a mesma coisa. Ninguém seria especial.
Para que novas formas especiais surjam, deveríamos ter uma sociedade e um sistema econômico que propiciassem que isto fosse possível. Muito parecido com o que Nicolau de Cusa pregava, Engels, com seu materialismo, ensinava a mesma coisa. É o espírito neoplatônico que surge em suas palavras:
pour nous, l’explication est toute simple. Les forces de production qui sont à la disposition de l’humanité n’ont pas de limites. Le rendement de la terre peut progresser indéfiniment par l’application de capital, de travail et de science. Selon les calculs des économistes et statisticiens les plus éminents, la Grande-Bretagne « surpeuplée » peut être en mesure, en l’espace de dix ans, de produire assez de blé pour nourrir le sextuple de sa population actuelle…
[…] La confiance d’Engels dans l’« essor irrésistible des forces productives » — quel que soit le mode de production, puisque « Jamais une société ne dispa-raît avant que soient développées toutes les forces productives qu’elle est as-sez large pour contenir en son sein.
Para nós a explicação é muito simples. As forças de produção que estão à disposição da humanidade não têm limites. O rendimento da terra pode crescer indefinidamente pela aplicação de capital, de trabalho e de ciência. Segundo os cálculos dos economistas e estatísticos mais eminentes, a Grã-Bretanha “superpopulosa” pode ser capaz de, no espaço de 10 anos, produzir trigo o suficiente para alimentar o sêxtuplo de sua população atual…
[…] A confiança de Engels no “progresso irresistível das forças produtivas”- quaisquer que sejam os modos de produção, porque “jamais uma sociedade desaparece sem que haja desenvolvido todas as forças produtivas que são vastas o suficientes para estar contidas dentro de si. (tradução nossa a partir da edição francesa)
Hans Jonas, como muitos outros que só levam em consideração os dados dos sentidos e do senso comum, não podem aceitar essa afirmação de Engels, que eles consideram ingenuidade e utopia. O espírito cristão tampouco, porque a Terra vai sucumbir no Juízo Final. Também quem já alcançou um nível mais avançado passa a tentar convencer quem está atrás das consequências do retardatário que quer ter o mesmo que ele.
Aqui, Engels demonstra a tentativa falaciosa de se usar lógica para compreender a natureza e a sociedade:
os selvagens da Nova Holanda, que vivem à taxa de um habitante por milha quadrada, sofrem tanto de uma superpopulação como a Inglaterra. Em suma, se queremos ser lógicos, devemos admitir que a Terra já estava superpopulosa quando apenas um homem a habitava.
[…] Se não é realista, está sempre aberto ao Estado para organizar um serviço público para matar os filhos dos pobres sem dor, conforme proposto por “Marcus” (um malthusiano anônimo do século XIX). Assim, cada família trabalhadora teria permissão para ter dois filhos e meio, mas todos aqueles que viriam além disso deveriam ser mortos sem dor.
[…]É verdade que esta teoria se enquadra muito mal com o ensino da Bíblia sobre a perfeição de Deus e de sua criação…. Devemos expor essa doutrina infame e vil, essa abominável blasfêmia contra o homem e a natureza, e considerar suas consequências adicionais? Aqui, a imoralidade dos economistas atinge seu clímax. (tradução nossa a partir da edição francesa)
É bastante curioso que Engels soe cristão nessa passagem, apesar dele e Karl Marx serem costumeiramente denunciados como filhos do Anticristo pelos religiosos. Ao mesmo tempo em que Ludwig von Mises, que é abertamente anticristão e defensor implacável do capitalismo e do malthusianismo, seja tão recomendado por alguns cristãos conservadores…
Tanto Rosa Luxemburgo quanto Engels souberam levar em consideração o fator mais importante para o desenvolvimento da economia: o ser humano e uma sociedade que prepare o terreno para um número cada vez maior de pessoas, porque o mal não está em novos nascimentos nem nos pobres, mas no capitalismo.
Nicolau de Cusa e a Negentropia
Nesta parte final do artigo usaremos uma importante obra de Nicolau de Cusa cujo título é De Venatione Sapientiae. Importante para nós é a ideia de Deus, estabelecida pelo filósofo da Renascença, como sendo uma Atualizada-Possibilidade. É importante, antes de avançarmos, recordar mais uma vez Karl Marx.
Já no final do terceiro, e último, volume de O Capital, Marx caracteriza aquele que seria o reino da liberdade. Segundo Marx, o reino da liberdade “começa onde o trabalho deixa de ser determinado por necessidade e por utilidade exteriormente imposta (2008, pág. 1083). Adiante, nosso filósofo descreve o trabalho tanto do selvagem quanto do homem civilizado, sendo que ambos precisam lutar contra a natureza. A diferença é que na civilização as necessidades crescem a cada momento, mas as forças produtivas também, ensina Marx. A verdadeira liberdade, para ele, só pode ser a de um trabalho coletivo, no qual os seres humanos dominem as forças da natureza sem se deixarem dominar por ela, e com meios de produção que reduzam o esforço humano. A necessidade vai sempre existir, mas o objetivo de Marx é que o ser humano se desenvolva como um fim em si mesmo, pois é aí que está o reino da liberdade, que nasce da redução da jornada de trabalho (2008, p. 1084).
A partir das ideias de Marx sobre o reino da liberdade, e das críticas de Rosa Luxemburgo e Engels contra o malthusianismo, podemos dizer que o verdadeiro crescimento econômico dar-se-á quando os homens não mais forem dominados pela força cega da natureza, da abstração do capital, junto a isso com um crescimento populacional crescente aliado a um desenvolvimento contínuo das capacidades individuais de cada um, porque o trabalho será humanizado e será gerado tempo disponível para cada um de nós investir em educação, hobbies, etc.
Aqui entra como um complemento no plano metafísico a Atualidade- Possibilidade. A epistemologia de Nicolau de Cusa é uma retomada, após séculos de aristotelismo, da ciência de Platão. No De Venatione Sapientiae, há uma comparação excelente entre Platão e Aristóteles. Esse último possuía uma mente lógica e dava enorme importância ao significado das palavras. Segundo Nicolau, Aristóteles considerava que a fonte do conhecimento estava no desdobrar de uma palavra, ou seja, em sua definição. Quem lê a obra principal de John Locke, um legítimo herdeiro do sensualismo aristotélico, percebe como o pensador inglês era obcecado com o famoso princípio de não-contradição. Ele lança contra o leitor insistentemente esse princípio para provar sua tese de que a mente é uma folha em branco. Muito diferente era Platão, diz Nicolau. Ele menciona as cartas de Platão ao tirano Dionísio as quais o grande filósofo, de maneira magnífica, ensina que “a verdade antecede as palavras, as definições e as representações perceptíveis.”
Nicolau de Cusa segue Platão e os neoplatônicos e coloca como prioridade para o progresso da ciência o papel da criatividade, ou aquilo que os antigos chamavam de conversão demiúrgica. Expliquemos agora o que seria a Atualizada-Possibilidade deste grande filósofo. Muito de acordo com o nosso artigo, a exposição da ideia no texto do De Venatione Sapientiae é brilhantemente simples: Deus é anterior a alguma coisa e a nada, assim como é anterior à possibilidade-de-ser-feito e ao-que-já-foi-feito. Portanto, não é possível que o Eterno não seja totalmente atual; como a humanidade não é atual, pois é subsequente à possibilidade-de-ser-feito, está sujeita à possibilidade de ser feita diferente daquilo que ela é, pois somente Deus é a Atualizada-Possibilidade (1998, p. 1301).
Esta atualizada possibilidade reflete o ensinamento dos grandes filósofos das Antiguidade, que veriam na ideia cristã de um juízo final destruidor nada menos que uma heresia. Na obra do grande neoplatônico inglês Thomas Taylor A Dissertation on the philosophy of Aristotle, há uma ressurreição da crença, verdadeiramente religiosa, tanto de Platão como de Aristóteles, de que o planeta Terra é um animal divino (1812, p. 462) e, como no Timeu, uma Totalidade das Totalidades, possuindo um corpo deificado (Ibidem). Ambos os filósofos consideravam o Universo um ser eternamente energizante (1812, p. 465). Taylor explica que a Totalidade de Platão e Aristóteles é exemplificada pelo oceano, “que é a totalidade ou o perpétuo princípio da água” (1812, p. 455). Estas passagens de Thomas Taylor são fundamentais para um maior esclarecimento sobre um mundo que se renova a todo momento. A ideia de nosso planeta morrer é estranha aos filósofos pagãos. A Terra se renova a cada momento, pois é uma Criação daquilo que Pitágoras chamava de Mônada das mônadas, que no Universo suas totalidades animadas seguem por necessidade geométrica (1812, p. 463). Existe, portanto, um aproveitamento por parte de Nicolau de Cusa da noção de um Universo que está vivo e criando novas formas eternamente. Da mesma maneira que as Formas superiores, o ser humano também renova o mundo e a si mesmo através do trabalho produzindo novas criações.
A presença marcante do Uno e do Múltiplo contido no diálogo Parmênides é visível. Nicolau de Cusa censura os filósofos por não terem percebido que o Um é anterior aos contraditórios, pois em Deus a possibilidade-de-existir e ser-atualmente-existente não diferem (1812, p. 1302). Em termos práticos não podemos colocar um ponto final na História nem qualificarmos algum sistema político ou econômico como definitivos. É importante lembrar aos marxistas que nem mesmo as ideias de Marx são definitivas, e que a dialética não pode ser interrompida quando o líder comunista chega ao poder. A chave para compreendermos Nicolau de Cusa é que não são as palavras que precisam ser desdobradas, mas sim perceber e colaborar para que o verdadeiro desdobramento é realizado pela natureza e pelo homem através da cooperação que realiza junto à Divindade. Novas espécies surgem a cada momento, novas formas e possibilidades. É algo realizado e percebido pelo espírito, e não pela letra.
Dentro da obra que estamos utilizando, Nicolau de Cusa faz uma analogia extraordinária que pode servir como exemplo do que seria o trabalho humano (que ele usa para demonstrar o crescimento de nosso espírito).
Lá existe a imagem do profeta com uma harpa de dez cordas, e em cada uma dessas cordas existe um tipo de louvor: bondade, grandiosidade, verdade, entre outros. Nicolau de Cusa diz na sequência:
a harpa é o trabalho da inteligência, de maneira que o homem tenha um instrumento em que possa chegar aos arranjos musicais doces e deliciosos. Porque ele faz audível e perceptível aqueles arranjos que ele possui dentro de si de maneira inteligível, e permite aos seres que possuem intelecto possam deleitar-se ouvindo com o ouvido, e ouvindo perceptivelmente por meio do som, aquilo que eles possuem de maneira não perceptível em suas almas.
Portanto, Nicolau de Cusa prossegue, “o tocador da harpa é a inteligência, as cordas a natureza que é movida pela inteligência, e a caixa de ressonância é o objeto que convém à natureza”. O homem, ele ensina, é uma harpa viva que tem dentro de si todas as coisas necessárias para cantar a Deus os louvores que Ele já está familiarizado em ter dentro de Si. Assim, o ser humano, através desta atividade contínua, torna-se cada vez mais uma semelhança com Deus (1998, p. 1315, 58).
Poucas vezes o trabalho foi tão enobrecido como nas palavras acima. Mais do que uma besta de carga que trabalha para comer e realizar satisfações imediatas, como alguns o enxergam, o ser humano, segundo Nicolau de Cusa, é o elo de ligação do Universo e um microcosmo (1998, pág. 1338). Cabe ao ser humano realizar o que o poeta Fernando Pessoa aqui lamenta não poder ter visto
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão…
São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.
São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
A legítima conversão demiúrgica a ser realizada pelos homens e mulheres foi resumida assim pelo neoplatônico Jâmblico
pois torna aquilo que é inefável na bondade dos Deuses capaz de ser expressado; ilumina aquilo que não possui forma em algo que possui forma e cria em razões visíveis, ou formas produtivas, o que no Bem divino está acima de toda a razão.
Jâmblico, On the Mysteries. (tradução nossa a partir da versão em inglês de Thomas Taylor)
A negentropia vai ser realizada com a ajuda do ser humano com este aumento contínuo da população do Planeta Terra, com uma energia criativa cada vez mais concentrada em diversos pontos, com esta Atualizada-Possibilidade que pode fazer sempre com que a Humanidade sempre supere a si mesma, mas para que isto aconteça é essencial que o trabalho seja incessantemente valorizado e transformado, porque a utopia de Marx (um criador de utopias, como Platão) de um aprimoramento da força de trabalho que forneça tempo para que o ser humano use seu poder criativo é uma junção improvável entre um filósofo da Renascença e o famoso revolucionário do século XIX.
Referências
CUSA, Nicolau de. De Venatione Sapientiae. 1.Ed. Minneapolis: The Arthur J. Banning Press, 1998.
ENGELS, Friedrich, MARX, Karl. Critique de Malthus. Paris: François Maspero Éditeur, 1978.
JÂMBLICO. On the Mysteries. Londres: Bertram Dobell, 1821.
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade. 1.Ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Sociedade e Economia, 1671.
LUXEMBURGO, Rosa. Introduction à l’économie politique (versão francesa), 1925.
MARX, Karl. O Capital- livros 2 e 3 (volumes 4, 5 e 6). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2008.
________Grundrisse. 1.Ed. São Paulo: Boitempo, 2011.
MISES, Ludwig von. Ação Humana. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
TAYLOR, Thomas. A Dissertation on the Philosophy of Aristotle. Londres, 1812.