Uma análise do Contra Celso de Orígenes de Alexandria

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O filósofo platônico Celso publicou por volta do ano 178 da Era Cristã um texto contra os cristãos chamado de Discurso Verdadeiro. Praticamente desconhecido nos séculos seguintes, deve, no entanto, ter causado um impacto considerado na comunidade cristã de sua época. Em 248, o teólogo Orígenes de Alexandria publicou seu Contra Celso, talvez porque houvesse uma grande necessidade de resposta aos argumentos do filósofo pagão que deveria ser um grande problema para a nova religião. Não houve, é claro, um embate direto entre os dois, mas Orígenes escreve com tanta paixão que parece que está respondendo diretamente a Celso.

As palavras de Celso são reproduzidas integralmente por Orígenes, o que talvez ele tenha feito mais por imprudência do que por honestidade intelectual. Podemos ter a dimensão da enorme separação que há em termos humanos e intelectuais entre o paganismo antigo, representado pelo platonismo, e o espírito cristão e bíblico. Definitivamente não falam a mesma língua, e o Logos de Orígenes é bem pouco parecido com o da filosofia pagã.

Celso conhecia profundamente as escrituras judaicas e cristãs, inclusive os evangelhos que viriam a ser rejeitados pela igreja. Também estava informado sobre os movimentos dissidentes do Cristianismo, como o dos marcionitas. Às vezes ficamos com a impressão que Celso conhece até mais sobre o Cristianismo do que Orígenes. Boa parte do conteúdo da Bíblia é abordado por Celso em seu manifesto. Ele ignora os profetas e Paulo, mas de resto tudo com maior ou menor intensidade é atacado.

Orígenes tem muita dificuldade em responder as observações sagazes de Celso. Devemos essa dificuldade muito à ambivalência do modo com que Orígenes lê a Bíblia. Ora ele a toma como literal, ora como alegoria, tudo aparentemente é devido a conveniências do momento. No geral ele encara o Antigo Testamento como uma grande alegoria. Já o Novo tende a ser interpretado literalmente. Exemplo: o mito do Gênesis é um óbvio ponto fraco para os cristãos, ainda mais porque os gregos não tinham nenhuma ideia de Criação. E Adão e Eva parecem muito infantis a Celso. Orígenes, com certeza também constrangido pelo mito tomado como verdade literal, precisa jogá-lo para a alegoria. Esta era uma crítica frequente de Celso aos judeus e cristãos, que é a de alegorizar toda a passagem que os constrangessem. Orígenes não escapa à regra. No caso da Ressurreição de Cristo e a da futura Ressurreição da carne, Orígenes tende a tomá-las como verdades literais, pois ele sabia que se assim não o fizesse, a fé estaria em perigo. Agora, o que Orígenes entende por Ressurreição não parece com o que a igreja cristã iria pregar mais para frente.

O que mais separa o pensamento cristão de Orígenes e filosófico de Celso é que o último tende a mover-se em uma escala de eternidade, enquanto o do primeiro dentro da História. O Cristianismo é uma religião que pretende ser histórica e cultiva a História; parece mesmo idolatrá-la. Isso é incompreensível para Celso. Se, futuramente, os cristãos irão apelar cada vez mais apelar para argumentos de autoridade como os de Aristóteles na Idade Média, ou como os de Tomás de Aquino atualmente, nos primeiros séculos a ênfase é na História. O esquema parece ser este: o Cristianismo é verdadeiro porque é mais novo, ao mesmo tempo em que o Judaísmo é verdadeiro em relação ao paganismo porque é mais velho do que o mesmo. A verdade torna-se uma questão de datas. A todo momento Orígenes apela para a antiguidade de Moisés. Logo, se Moisés é mais velho do que Platão ou Homero, segue que a Bíblia fala a verdade. Quando confrontado por Celso das contradições das leituras dos judeus e cristãos sobre o texto da Bíblia, Orígenes descarta os judeus como heréticos e, se Platão concorda com os cristãos, então recorre-se à antiguidade da visão grega da verdade que antecipou o Cristianismo.

A obsessão cristã por História distorce todo o entendimento de Orígenes sobre o quê Celso está falando. A suposta autoridade da História é a espada com que o teólogo cristão se defende. De certa maneira, é como se ele achasse que a verdade se move por paradigmas. Se aparentemente estão todos falando de Cristianismo, e as antigas filosofias gregas estão quietas, todos devem submeter-se ao paradigma cristão. O esquema histórico do Cristianismo está por detrás de seus “filhos” marxistas, darwinistas e talvez da filosofia da ciência de Kuhn. Neste esquema da história, nada pode ser questionado e tudo fica girando ao redor do suposto paradigma. Giovanni Reale também caiu neste erro em uma de suas obras. Ele achava inevitável o triunfo do paradigma cristão porque a filosofia pagã estava “esgotada”. Bobagem. Em que os filósofos cristãos eram superiores a Plotino? Santo Agostinho foi muito mais teólogo. O paradigma da Idade Média era a Metafísica aristotélica, mas a verdadeira ciência foi produzida pelos platônicos Robert Grosseteste e Roger Bacon, que pensavam em algo não relacionado ao paradigma. O suposto paradigma do século IX poderia ser qualquer coisa, mas nunca um pensamento tão elevado como o de Escoto Erígena.

Fiz estas observações para explicar melhor a mentalidade de Orígenes. A filosofia de Celso de maneira obrigatória teria que ser varrida do mapa, pois o paradigma histórico cristão não poderia suportá-lo. Nas vezes em que Celso fala sobre o que é eterno e que de maneira alguma pode abalar ou surpreender a Deus, Orígenes não consegue compreender. Seu Deus, mergulhado em História e extremamente preocupado com os afazeres humanos, inevitavelmente precisa surpreender-se com que as coisas aconteçam de uma maneira ou de outra. Sem isso não poderia haver nenhuma Encarnação, incompreensível, aliás, para Celso. Por que Deus estaria tão preocupado com a situação dos homens e da natureza se Ele, além de criá-los, criou também as possibilidades de suas existências? Não existe nada de novo na natureza ou entre a Humanidade que Deus não tenha previsto.

A filosofia de Celso e o pensamento cristão de Orígenes também divergem e muito sobre o Humanismo. O pagão Celso parece ter fé, o que não deveria acontecer, supostamente, pois nega qualquer apocalipse destruidor, não crê em um Deus que fique irritado com as ações humanas e sabiamente afirma que é difícil mudar a natureza de qualquer um. Já Orígenes prepara terreno para a abolição da liberdade humana quando finge defendê-la, querendo submeter nossos intelectos à autoridade religiosa. Critica Celso por ter dito que a natureza humana é de difícil correção, mas ensina em castigo eterno irrevogável para os seres que não acreditarem em suas “verdades”. Diz que o mundo é bom porque Deus viu que assim era, mas que o mesmo Deus vai destruir o que Ele fez bom, porque os seres humanos transformaram o mundo em uma coisa maligna. Assim como em Aristóteles, a potência é a fonte do Mal em Orígenes e no Cristianismo primitivo. Todo trabalho criativo filosófico, religioso, médico, artístico criados ao longo de milênios pelos diversos povos são condenados como obras de demônios por ele. Não há muito o que se fazer após a revelação cristã. Quando Celso compara as realizações impressionantes dos gregos com a total ausência de criação humana por parte dos judeus a resposta de Orígenes é uma mistura de risível com criminosa: o que é, diz ele, a criação pagã e demoníaca dos gregos quando comparada às leis de Deus que impedem que homossexuais saiam livremente às ruas de Jerusalém!

Aparentemente o mundo está dominado por demônios para os primeiros cristãos. Não se sabe para que exatamente Deus o criou. Orígenes ataca a todo o momento Celso fazendo comparações entre as “abominações” dos mitos pagãos e a “pureza” bíblica. Ele não percebe que isso é irrelevante para os gregos porque seus mitos estão em outro plano. As outras civilizações não existem para Orígenes. Africanos, chineses, persas, indianos, talvez até existam, mas foram abandonados por Deus. O Logos Divino só queria saber era dos judeus e seus profetas. Em nenhuma parte do livro a diferença entre os dois torna-se tão abissal quanto em relação aos animais. Até hoje os cristãos pensam como Orígenes. Aqui, Celso atinge um nível sublime. Os animais têm linguagens próprias, trabalham como os humanos, possuem senso de compaixão e estão mais próximos de Deus. No início, ao contrário do relato bíblico, os seres humanos eram caçados pelos animais, e não o contrário. Portanto, o mito bíblico é implausível. Isso enfurece o teólogo cristão. Orígenes, como um Descartes avant la lettre, só consegue enxergá-los como autômatos. Celso demonstra como o mundo foi criado tanto para os animais quanto para os humanos, e não que ele creia em uma Criação, mas que Deus provê a todos. Todas estas intuições científicas de Celso foram confirmadas pela ciência moderna. Enquanto os animais de Celso estão próximos a Deus, para Orígenes a maior parte deles faz parte do exército do Diabo. Por que foram criados, então?

Não somente a ciência tomou o rumo que Celso previu, mas também a religião cristã. Não que Celso mencione isto, mas Irineu e Clemente de Alexandria ambos condenavam os gnósticos por seu celibato. A igreja séculos depois exigiu do clero e das freiras o mesmo, como viu Schopenhauer. Orígenes, por sua vez, condena a todo o momento a arte pagã, as esculturas, o teatro, etc. No início, as igrejas deveriam ser bem pobres e sem ornamentação alguma. Séculos mais tarde, a arte greco-romana foi absorvida pela Igreja Católica, e isso foi algo excelente, e que os primeiros fiéis não poderiam imaginar.

Toda a filosofia platônica de Celso ensina que podemos ver a Deus com o olho da alma. Ele logo percebeu o sensualismo cristão, que nem precisava de um Aristóteles na Idade Média para realizar-se. Os cristãos estão obcecados pelo corpo, pela matéria, e seu deus precisa manifestar-se pelos sentidos, por revelação, e não por uma transcendência de nossos sentidos. Tudo isso teria graves consequências futuras na ciência. Ao contrário da dialética platônica, incessante, que constrói hipóteses e vê o trabalho do homem como algo contínuo, Orígenes e muitos cristãos esperam sempre por revelações. O máximo que podemos fazer é recolher a sabedoria antiga e aguardar o fim dos tempos. Acolherão Aristóteles mais para a frente e seu método de recolher dados dos sentidos e classificá-los. Discutirão signos e revelações. Submeter o próprio conhecimento a algo criativo e desafiador, nunca! Orígenes não crê em trabalho criativo uma vez que repete sempre que as poucas verdades dos pagãos não passam de uma condescendência de Deus. Não é verdade, pois a reflexão filosófica é árdua, custa tempo, incompreensões e, invariavelmente, muitos erros. Nada vem de graça, não! Como diz Celso, o conhecimento filosófico não pretende ter caráter de revelação, pois o filósofo declara de onde sua sabedoria vem.

Há toda uma discussão reveladora sobre o problema do mal no livro Em determinado momento, Orígenes faz uma afirmação que considero satânica: a de que o mal, e não o bem, é que tem a característica de difusão. É uma total inversão do ensinamento feito quase na mesma época por Plotino, fruto de seu platonismo, de que o Bem tem a característica de propagar-se de difundir-se. O Pseudo- Dionísio dirá que precisamos de muita luz que se propague para destruímos as trevas. O que Plotino diz sobre o Bem ecoará pela Idade Média, por Tomás de Aquino entre tantos outros.

Quanto ao que Celso acusa o Cristianismo de fazer, ou seja, situar a Divindade num plano humano, querendo encarnar e viver entre nós, talvez esse seja o ponto que nem ele nem Orígenes poderiam prever todas as implicações desta ideia. Esta talvez seja a ideia mais problemática, ao mesmo tempo, mais sublime do Cristianismo. Envolve certamente diversas aporias e contradições que Jung percebeu tão bem em muitos de seus livros. O Deus bíblico quer encarnar, e isso é uma contradição. Nem mesmo depois do sacrifício na cruz a história parece ter terminado, haja visto o apocalipse. Só que isso deixa a religião cristã altamente vulnerável a ataques. Jung poderia admitir o Jesus real, mas ele sabia que o arquétipo se sobrepôs. Quando Deus entra na história, talvez seja mais complicado elaborar uma doutrina sobre isso do que a presença do Espírito Santo após sua morte e Ressurreição. A religião islâmica surgiria mais tarde negando qualquer tipo de encarnacionismo, transformando Cristo em um mero profeta. Huizinga percebeu que a crença católica mais fácil de ser eliminada do catolicismo por Lutero e outros reformadores foi a do culto dos santos. No geral, o Cristianismo é aceitável às outras religiões por sua ênfase na caridade, oração, arte, música entre outras coisas, mas a de um Deus na história não. Foi fácil ao Islã absorver grande parte do mundo cristão. Havia muito que os embates burocráticos entre seitas rivais dominava a discussão, e a religião de Maomé surgiu como uma moderadora. O espírito da filosofia e do relacionamento do homem com Deus e com o Todo desapareceu gradualmente na Idade Média, dando sua vez a uma mera discussão abstrata sobre nomes e definições, o que facilitou o caminho para Lutero.

Celso sugere a reflexão, a visão geral de todas as coisas, a ligação entre todos os homens e mulheres, civilizações e até mesmo a natureza. A filosofia é perguntas e respostas constantes. A paz entre as civilizações advém da própria diversidade entres elas, o que é bom e deve ser respeitado. Quem quer unidade mundial pela fé não entendeu nada, diz ele. Orígenes separa radicalmente os bons e os maus, o ser humano da natureza, quer forçar a revelação ante à reflexão e sugere um governo mundial de todos os povos unidos pela fé. A diversidade de nações com leis e crenças diferenças deve ceder espaço ao governo mundial sob o Evangelho. Não imaginava ele que o Islã estava por aparecer com mais força do que a Igreja…

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