Resenha: A Relíquia, de Eça de Queiroz

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O grande escritor português Eça de Queiroz, que considero superior a Machado de Assis, foi bastante polêmico e ousado em seu romance A Relíquia. Em sua época, muito influenciado pela obra de Ernest Renan “Vida de Jesus”, que recriava a narrativa do Evangelho sem os aspectos sobrenaturais, a obra de Eça de Queiroz serviria de base também para outro escritor português, José Saramago, em seu livro “O Evangelho segundo Jesus Cristo”. A Relíquia denuncia uma sociedade falsamente religiosa, no qual o parecer ser é mais importante do que ser.

Em Portugal no século XIX, no qual o catolicismo já vivia uma grande decadência, a religião autêntica cedeu lugar a uma beatice sentimental. Nesta sociedade de herdeiros, pouco produtiva, ainda com uma mentalidade feudal e de culto a heranças, serviu de inspiração para Eça de Queiroz demonstrar mais uma vez o atraso de seu país, além de uma declaração de ceticismo em relação ao relato Bíblico dos Evangelhos.

O protagonista do romance, Teodorico Raposo, é um típico bacharel ocioso que Portugal (e o Brasil também) produzia em série naquele tempo. Sem grande futuro pela frente, decide aproximar-se de uma tia rica e de uma carolice extrema. Para ganhar confiança da velha, aparenta ser religioso, acompanhando-a em todas as missas possíveis. Todas as descrições desta vida religiosa de muita aparência e de pouquíssimo conteúdo é fornecida ao leitor para situá-lo nas inúmeras exterioridades do catolicismo de Portugal. É uma crítica feita com ironia muito sutil. A presença do clero na casa de Maria do Patrocínio, nome da tia de Teodorico, deixa mais claro o aspecto repulsivo do clero.

Teodorico é um personagem libidinoso, desejoso de uma vida de luxúria também. Sonha em viajar para Paris, cidade símbolo de uma vida de riquezas e belezas. Claro que sua tia não permitirá que Teodorico viaje para lá. Paris é conhecida como a cidade que representa o ateísmo e a revolução, tão odiada pelos católicos reacionários. É a cidade que corrompe a alma por excelência. Maria do Patrocínio também possui horror aos relacionamentos amorosos e às crianças, curiosamente algo tão contrário aos ensinamentos de sua religião. No fundo, ama mais é o dinheiro. Teodorico chega a desesperar-se quando percebe que sua tia irá deixar sua fortuna para a Igreja. Ele, que cumpre tão fielmente as ordens da tia, ficará sem o dinheiro, que irá ser transferido para os inúteis padres que só lá aparecem para jantar?

A salvação vem quando Maria do Patrocínio, aflita com seu estado de saúde, sugere ao sobrinho que faça uma peregrinação à Terra Santa para a recuperação de sua saúde. A partir deste momento, o romance de Eça de Queiroz ganha uma enorme força. A própria ideia de peregrinação a Jerusalém já estava morta no Ocidente católico havia séculos. Entretanto fazia sentido para alguém tão preocupada com aparências como a tia beata. Durante a viagem, Teodorico conhece uma aventureiro alemão de nome Topsius, tão vazio como o português. Em Alexandria, Teodorico pode dar vazão à sua libidinagem com uma prostituta inglesa. Para ele, o auge da aventura estava ali. Jerusalém era vista para os europeus científicos do século XIX apenas como uma cidade bárbara no meio do deserto, e símbolo da loucura das Cruzadas.

Na Cidade Santa, a história toma um rumo surpreendente: durante um sonho de Teodorico, o mesmo torna-se testemunha das últimas horas da vida de Jesus Cristo. Como já foi mencionado, o estilo polêmico do autor neste momento é muito parecido com o de Renan. Eça de Queiroz coloca no texto todo o seu ceticismo e suas críticas não só ao Cristianismo, mas também ao próprio Cristo. O texto em si é excelente, e as ironias funcionam muito bem. Para o século e para o país em que foi escrito, trata-se de algo surpreendente. Tudo o que o autor passa a narrar é para chegar à conclusão que a Ressurreição de Cristo jamais ocorreu. É a profissão de ceticismo do autor.

Retornando a Portugal com supostas relíquias da Terra Santa em sua mala, Teodorico já se vê como herdeiro da tia carola. No entanto, no momento em que vai mostrar o que trouxe à tia, diante de várias outras testemunhas, ao invés da água do rio Jordão, aparece uma peça de roupa da prostituta pelo qual ele se apaixonou em Alexandria. Teodorico, então, cai em desgraça.

Aqui entra em cena um diálogo muito importante de Teodorico com sua própria consciência, que no primeiro momento parece ser o próprio Cristo. Teodorico blasfema e declara sua descrença nas verdades do Cristianismo, e revolta-se por não ter tido nenhuma recompensa, apesar do “sacrifício” que fez em assistir missas com a tia, peregrinar a Jerusalém etc. Ora, afirma a própria consciência, se em seu espírito nada daquilo era verdadeiro, porque a recompensa o seria? Tudo era aparência. Ele só amava o dinheiro tão somente igual à sua tia, que não teve quaisquer remorsos em expulsá-lo de casa. Não há qualquer caridade cristã nos personagens, como a própria religião é apenas uma sombra. Tudo é falso. O lamento final do personagem Teodorico foi, e isso é importante quando vemos o Cristianismo atual, o de não ter sido esperto o bastante para, ao invés de levar as tais relíquias para a tia, comercializar as mesmas e, assim, ganhar muito dinheiro e começar uma nova religião. Fundamental esta reflexão, haja visto que muitos deixam a consciência facilmente de lado ao comentar os crimes das religiões, porque o importante é manter a própria estrutura da mesma; neste momento, a consciência moral é habilmente esquecida. Eça tem razão: se Jesus estivesse vivo no século XIX, o século da burguesia, teria sido condenado ao suplício novamente, pois o povo, incluindo o clero, amavam muito mais a propriedade privada, as rendas e a vida confortável, do que o espírito de sacrifício de Jesus Cristo…

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