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Carl Gustav Jung e o Problema do Mal no Livro de Jó
Para realizarmos uma verdadeira investigação filosófica, ainda mais quando estamos diante do problema do Mal metafísico, precisamos estar preparados para as consequências que surgirão à nossa frente. Jung menciona essa preocupação durante sua brilhante e impactante obra Resposta a Jó. O tema do livro, ele sabe disso, já é suficiente para atrair a atenção de…
Para realizarmos uma verdadeira investigação filosófica, ainda mais quando estamos diante do problema do Mal metafísico, precisamos estar preparados para as consequências que surgirão à nossa frente. Jung menciona essa preocupação durante sua brilhante e impactante obra Resposta a Jó. O tema do livro, ele sabe disso, já é suficiente para atrair a atenção de pessoas religiosas e/ou de teólogos, e como o filósofo René Guénon ensinava em uma das suas obras, a teologia envolve uma alta dose de emoção. De maneira alguma é fácil dialogar e debater com teólogos, e quando um autor inverte de certa maneira certas concepções que estavam arraigadas em nossa psique durante séculos, pode-se esperar respostas violentamente passionais. Pelo menos é o que Jung imaginava.
Jung crê que os símbolos e a mensagem de um livro como o de Jó são fundamentais ainda para o homem contemporâneo. Afinal, trata-se de um tema que afeta todos nós, ou seja, o problema do mal e do sofrimento. Estamos até hoje presos a certas maneiras de nos colocarmos diante do problema que herdamos da Teologia, pois determinadas fórmulas como “o mal é a ausência de bem”, que Jung coloca no original como privatio boni, ou “todo bem vem de Deus, e todo o mal vem do homem”, ainda são repetidas ad nauseam por muitos quando a questão do mal é colocada.
Talvez, para sermos mais exatos, devêssemos atribuir este tipo de argumentação mais aos teólogos do que os filósofos, muito porque a forma como Jung irá elaborar seu pensamento é toda filosófica, pois avançar até o ponto que ele avança é inimaginável em um teólogo. Posso traçar a origem do pensamento de Jung nesta obra em Schopenhauer, uma vez que esse filósofo não teve medo de enfrentar o sofrimento do mundo oferecendo outro tipo de resposta até então ausente da filosofia. Jung, por sua vez, apresenta a genealogia de seu modo de pensar começando entre os gnósticos e passando por toda a alquimia. Aliás, em quase todas as obras o psiquiatra suíço baseia-se nas fontes mencionadas. Em Resposta a Jó, o gnosticismo e a alquimia são mais úteis e claros para ajudar a construir o pensamento da tese de Jung do que em sua obra psicológica.
Todos nós habituados a lermos a Bíblia conhecemos o livro de Jó. A história é muito profunda, mas também chocante por causa de como o problema do sofrimento humano nos é apresentado. Sem nenhum motivo que o leitor ou o fiel possa perceber, Jó é lançado na mais profunda miséria física e material. A narrativa de abertura do livro de Jó, por si só, já um desmentido da falácia cristã de que o mal é uma questão apenas moral. Ora, Jó era inocente e a decisão de sua queda veio de um conselho com origem em outro plano, portanto, o mal tem raízes metafísicas sim, ao menos neste livro é claro. A maneira como tudo se passa deixa Jung estupefato, pois é o próprio Satanás quem influencia IAHWEH a lançar toda uma série de desgraças contra Jó.
Normalmente, pelo menos eu sempre tive este costume, nos prendemos ao lermos a história de Jó, ao comportamento infame de sua mulher e amigos que, ao invés de oferecerem palavras de consolo ao sofredor, contribuem ainda mais para aumentar sua miséria. O livro de Jung serviu para alertar-me para algo que é fundamental para uma compreensão metafísica profunda de Jó: nem mesmo IAHWEH consola Jó em seu sofrimento que, aliás, foi causado por Ele mesmo! Percebemos, ao lermos Jung, que o principal responsável por todas as calamidades não somente da vida de Jó, mas também de toda a humanidade desde o início, ou seja, Satanás, que o mesmo desaparece na história e que IAHWEH o ignora completamente, sendo que foi a partir de seu conselho que tudo começou. E, se notarmos, o problema estende-se a outros livros também. Porque, ao menos no Cristianismo, nossa alma é criada apenas no nosso nascimento. Então, por que Deus estaria particularmente interessado em nossos pecados? Ora, eles só passam a ocorrer em um curto intervalo de existência, e mesmo assim, IAHWEH nos ameaça com as mais terríveis punições, inclusive com a aniquilação em um “lago de fogo e enxofre”. O problema maior vem de eras imemoriais, de um espaço de tempo cósmico altamente dilatado. Portanto, Satã em pessoa é o causador do mal, e Deus não age para impedir que o mesmo pare com suas atividades e, na própria Bíblia, não demonstra aparentemente grandes preocupações com ele, tanto é que some da história de Jó para não mais aparecer, enquanto IAHWEH passa a ocupar-se somente com os supostos pecados de Jó.
A complexidade do problema leva Jung a descartar como ingênuo e absurdo como o mal sendo apenas ausência de Bem. Ele demonstra o caráter positivo do Mal, e que os problemas do mundo não podem ser atribuídos apenas ao homem, pois isso não passa, diria eu, de um argumento idiota e revoltante. Outra coisa que Jung afirma é que mesmo que o homem tivesse livre-arbítrio para escolher entre o bem e o mal, foi o Criador do mundo quem gerou também as possibilidades do mundo. No entanto, digo que teria sido bom que Jung tivesse dado crédito a Schopenhauer por esses insights, pois fica parecendo que ele chegou sozinho a essas respostas, o que não é verdade. Mais à frente, Jung propõe que toda a preocupação de IAHWEH com o homem, e não com Satã, é apenas um jogo dialético para que Ele, a partir da consciência moral de Jó, passe também a ter uma autoconsciência. Apenas um ser sem autoconsciência pode ser levado a desgraçar a vida de um inocente apenas para ficar exibindo suas próprias façanhas durante a Criação, insensível ao desgraçado que se apresenta diante de seus olhos. Esse mesmo ser mata os filhos de Jó como se valessem menos que lixo, ao mesmo tempo promete repô-los como se fossem peças de um xadrez. O que Jung quer dizer é que IAHWEH tem poder, mas não consciência moral, e que Sua obsessão no homem tem este objetivo de alcançar uma consciência própria, por isso Satanás tem que desaparecer. A partir de Jó, o sofrimento da humanidade passa a ter importância para Ele, daí que, futuramente, terá que descer à Terra. IAHWEH é uma aproximação dos contrários, e somente assim podemos compreender que Deus é amor, mas também tem que ser temido. O conceito da harmonização dos contrários foi tomado por Jung da filosofia de Nicolau de Cusa.
A Encarnação acontecerá, e o próprio Deus será condenado e crucificado. Mas o Mal de maneira alguma terá sido vencido, afirma Jung. O mundo é do Príncipe das Trevas. Deus afirma isso, mas diz que mandará o Espírito da Verdade para guiar os fiéis. O Deus do amor veio à Terra, mas não demora muito para que Sua parte contrária apareça: o Apocalipse de João mostra-nos um Deus vingador, e a quantidade de sangue que ali jorra é interminável. Jung supõe que o Apocalipse narre uma segunda vinda de Deus à Terra. Em seu livro AION, Jung fez um estudo astrológico sobre a Era de Peixes, que, como sabemos, teve início logo após o nascimento de Cristo. O símbolo dessa Era possui dois peixes, cada um apontando para um lado diferente, o que significa, para Jung, dois momentos opostos. Possivelmente, ao menos até o ano 1000, uma fase mais tranquila, e depois uma era mais turbulenta, com um final traumático e com acontecimentos nunca antes presenciados, que antecipam a Era de Aquário. A dualidade da Era de Peixes assemelha-se ao caráter duplo da Divindade como antes já mencionado: é um Deus de amor mas, entretanto, é um Deus que pode ser terrível também. Por isso não se deve tentá-Lo; por isso Agostinho dizia que quem cometia um pecado confiando na misericórdia de Deus era maldito.
A lição mais importante da obra de Jung é a necessidade de aprendermos que o mal não pode ser negado e nem atribuído falsamente apenas ao homem. Muitas perguntas que Jung faz são filosóficas, e não podemos esperar que a Teologia nos responda. Sem compreendermos que o mal existe e deve ser enfrentado, podemos a qualquer momento ser atingidos por ele e não estarmos preparados. Heráclito afirmava que “quem não espera pelo inesperado, não irá detectá-lo, quando ele aparecer.” O que serve tanto para o bem quanto para o mal. Existe sim um lado obscuro dentro de cada um de nós, mas que pode ser integrado superando a contradição de bem e mal, formando uma personalidade estável. A humanidade atual está carente de símbolos, e o Cristianismo atual não oferece resposta a algumas das indagações mais profundas, pois nosso mundo experimenta há séculos, tipos de ações malignas desconhecidas da Antiguidade e da Idade Média. Apresentar tudo o que experimentamos de ruim apenas como uma privatio boni tem efeito nulo para nós. Daí que o homem dos dias atuais esteja perdido, sem qualquer luz, diz o psiquiatra suíço. Jung promove, a partir de um estudo ousado das Escrituras, uma base para sua própria psicologia, que contém muito da aceitação da obscuridade e do irracional já descobertos pela filosofia de Schopenhauer. Um dos livros mais impactantes que já li.