Devemos reconhecer que existe algo de extraordinário ao lermos o Aristóteles de Werner Jaeger (como também as interpretações neoplatônicas do Estagirita): vermo-nos livres de abordagens dogmáticas e mistificadoras de apologistas católicos (jesuítas, tomistas e neotomistas)!
Aristóteles foi um dos grandes filósofos da humanidade, sem dúvida, mas podemos e devemos ter acesso ao seu pensamento sem que o coloquem como linha auxiliar de outros interesses. Werner Jaeger fez uma grande e honesta obra sobre Aristóteles sabendo reconhecer seu gênio, mas também percebendo certas sutilezas do filósofo e muitas vezes até sua desonestidade em relação a Platão (apesar de que acho que Giovanni Reale fez isso com mais força e competência).
Praticamente todas as vezes que lemos ou buscamos algo sobre Aristóteles ficamos com a impressão de que, após ter sido aluno por mais de 20 anos de Platão, ele sai da Academia com o pensamento já formado, totalmente emancipado do pensamento platônico, e com todas as suas ideias já estabelecidas. O estudo feito por Jaeger derruba esse mito.
A Academia de Platão foi um espaço de extraordinária liberdade de pensamento, e muitas das ideias posteriores de Aristóteles tinham seu gérmen nas discussões internas entre os alunos. Não é possível compreender Aristóteles e seu empirismo, tal como o desenvolvimento da matemática grega com Euclides, sem o estudo de como funcionava o método de Platão.
Em suas primeiras obras, Aristóteles estava ainda sob a pesada influência de Platão. Tentou imitar seu mestre escrevendo diálogos filosóficos, tal como o Eudemo, que Jaeger compara ao Fédon. É estranho imaginarmos que o “empirista” Aristóteles uma vez escreveu sobre a imortalidade da alma, e o desterro da mesma no mundo terrestre. Eudemo é um diálogo antimaterialista por natureza (o que diria Karl Marx sobre isso, ele que o idolatrava tanto!). Foi escrito muito antes de Aristóteles vir a negar a sobrevivência da alma individual após a morte. É interessante uma observação feita por Jaeger que Aristóteles ainda era inteiramente dependente do método e do estilo de Platão, mas já havia elementos para se detectar que Aristóteles possuía já prematuramente um ligeiro sentimento de superioridade em relação a seu mestre.
Outra obra importante de Aristóteles que nos chegou, tal como o Eudemo, em fragmentos, foi o Protréptico. A obra mencionada serviu de inspiração para o Hortênsio, de Cícero, obra perdida que sabemos ter sido a inspiração para Santo Agostinho entrar na vida de estudo da filosofia. O Protréptico, ensina Werner Jaeger, é uma grande exortação da filosofia e de certa maneira uma propaganda da Academia de Platão. A obra escrita por Aristóteles serviu também como uma defesa da Academia dos ataques de Isócrates, que julgava que o método filosófico de Platão era inadequado para a juventude, porque era pouco “prático”. Isócrates poderia ter sido um dos autores da reforma do Ensino Médio de 2016 feita por burocratas do MEC. Também como Martin Heidegger percebeu quando critica a noção marxista de uma filosofia “prática”, Aristóteles também ensina a Isócrates que toda prática futura pressupõe uma teoria.
O Protréptico serviria de modelo também para o neoplatônicos como Jâmblico. Vários dos fragmentos da obra de Aristóteles circulavam pelo Mediterrâneo no início da Era Cristã. Vários autores colocavam fragmentos da obra dentro de seus próprios escritos. Influenciou os neoplatônicos principalmente a noção aristotélica presente no Protréptico de phronesis, que Jaeger traduz como “razão pura”. A phronesis não tem qualquer fim prático como pretendia Isócrates. Não serve para criar ou iniciar qualquer produção. A vida de contemplação é a melhor vida, o que Aristóteles repetiria em sua Ética a Nicômaco. O Protréptico é também uma antecipação da Metafísica e seu ideal de uma ciência mais elevada que é menos necessária, porém superior a todas as outras. Dificilmente um estudante de filosofia hoje em dia é apresentado a um Aristóteles que iniciou seu pensamento filosófico longe de um empirismo, e que não fez tabula rasa de seu próprio pensamento, pois o devia reconhecidamente a Platão.
Aristóteles estava longe de ser um tosco positivista, pois como Jaeger nos diz em sua obra, Aristóteles não dizia que a ciência era mera experimentação, mas que havia de estar bem fundamentada no estudo dos princípios. Para oferecer um exemplo, qualquer curandeiro de tribo é mais “prático” e “empírico” que um médico de universidade. O curandeiro é 100% prático, enquanto cabe ao médico dedicar pelo menos metade de seu tempo com aspectos teóricos e nada práticos. Jaeger propõe que o espírito de Aristóteles é o de Platão nesta obra, pois a vida teórica, a vida filosófica, não necessita de constantes afirmações de seu direito à existência. As formas de vida prática têm o seu lugar, mas não se exija de filosofia que proponha meios para ganhar dinheiro, oferecer glórias neste mundo, etc.
O livro que talvez marque o rompimento de Aristóteles com o pensamento de Platão seja o diálogo perdido Sobre a Filosofia. Aristóteles a partir daí passa a criar um estilo próprio e seu pensamento passa a ter características mais pessoais. Como todos sabemos, Aristóteles acreditava na eternidade do mundo. Platão e os neoplatônicos também acreditavam que o Universo não teria fim. Werner Jaeger explica que Aristóteles chamava quem acreditava em um início e o fim do universo de ateu, porque comparava a obra Divina à de uma artesão humano. Criticou Platão pois o Timeu envolve um semicriacionismo que iria encher os olhos dos cristãos. Mas perceba que o Demiurgo é apenas um organizador de uma matéria preexistente, nunca seu Criador. O Deus de Platão é o Bem, mas o tem aqui é Aristóteles. Esse último vai criar uma dicotomia entre os céus e a Terra. O nosso mundo não mais reflete uma cópia mais perfeita do Mundo das Ideias. O Céu e a Terra estarão separados em Aristóteles, e nosso mundo e nossa moral não mais refletem a perfeição das Ideias imutáveis. O Céu aristotélico segue suas próprias leis. É um erro considerar que o ataque a Platão feito por um Aristóteles “realista” tenha sido feito a partir do abandono da explicação mítica. O próprio Platão não pretendia que o mito fosse ciência, mas apenas uma explicação provável. Aristóteles também acreditava nos mitos, mas sua marca pessoal foi a maior imanentização feita por ele das ideias de Platão. O mundo físico por si só basta para ensinar o que antes era feito por uma Teologia. Não há necessidade de um Mundo duplicado das Ideias. Pelo que se lê no livro de Werner Jaeger, Aristóteles era um homem tão religioso quanto Platão, mas as decisões que ele toma em sua própria filosofia naturalmente o levam para cada vez mais longe do universo pitagórico-órfico de Platão.
Aristóteles atravessou mesmo o Rubicão quando abandonou as Formas platônicas. Sua imanentização o levou naturalmente a tomar essa decisão. A doutrina das Ideias está totalmente ligada à noção da preexistência da alma. O Aristóteles religioso tende a encontrar no mundo- e quase que somente nele- as explicações para tudo. Se a alma é uma folha em branco e somente um intelecto bem pouco definido é a única coisa que sobrevive após a morte, então nunca poderá haver uma contemplação de um mundo de Ideias fixas tal como o filósofo platônico contempla quando escapa da caverna. Sim, porque a contemplação do filósofo é uma Anamnese, ou seja, uma recordação de uma alma que já existia. A tentativa de destruir as Ideias tem como base esse pressuposto, afirma Jaeger.
Porque Aristóteles negava o Mundo das Ideias, tem-se o resultado de que sua ética tende a ser bem mais modesta do que a de Platão. É de se observar que a Ética a Nicômaco segue o caminho estabelecido por Platão em sua Díade do Grande-e-do-Pequeno, que é a fonte do mal no mundo. Aristóteles, ao contrário de Platão, não mira um Bem que está além de nosso mundo para estabelecer sua ética. Tem a vantagem de que ela funciona para diversos tipos de finalidades, o que é importante para um mundo complexo como o do século XXI, mas perdemos qualquer objetivo de uma moral mais elevada, pois a ética é algo muito mais externo e menos íntimo do que a moral. A Política e a Ética de Aristóteles podem justamente por causa de seu caráter imanente, prometer uma felicidade baseada em uma vida teórica. Platão jamais poderia admitir uma felicidade aqui e agora por causa da instabilidade do mundo comparada à fixidez do Mundo das Ideias.
Faltou, e isso compromete bastante a obra de Werner Jaeger, um julgamento mais profundo da indução aristotélica. Digo isso porque os capítulos dedicados à Física e à Política poderiam ser mais esclarecedores se abordassem que a desastrosa indução feita pelo filósofo o levou a cometer erros graves nessas matérias. A desumanização promovida por ele em sua Política de escravos, mulheres e crianças tem origem na sua indução, e sua Cosmologia confusa e absurda segue o mesmo caminho. Platão foi mais flexível em seu pensamento político justamente por seu método dedutivo, daí que ele percebeu que a sabedoria pode estar presente em outros povos também, pois o Nous sopra aonde quer, como dizia Eric Voegelin. As Cosmologias de Platão de dos Pré-Socráticos são muito superiores à de Aristóteles. Sua indução baseada nos sentidos foi a que viria a influenciar a astronomia de Ptolomeu. Os sentidos nos dizem que o Sol gira em torno da Terra.
É de se admirar o trabalho feito por Aristóteles em relação à Poética a ao teatro grego. Todas as suas obras sobre o assunto, no entanto, foram perdidas. Seu amor pela poesia e pelo teatro não estava ligado à preocupação de Platão de uma arte ligada à moral.
A filosofia de Aristóteles pode ser estudada por si só, sem deturpações feitas a posteriori por motivações teológicas ou para a imposição de poder de religiões. Sua filosofia foi extremamente prejudicada pela teologização de seu pensamento, muito provavelmente porque muçulmanos e cristãos viram em algumas de suas ideias uma ameaça inferior ao que Platão representava (metempsicose, uma doutrina semicriacionista, religiosidade), por isso fizeram de Aristóteles o filósofo por excelência. Pode ser que ele também seja o antecessor de Kant quanto ao ceticismo em relação aos argumentos teológicos, e isso é mencionado brevemente pelo autor, mas seria desnecessário acrescentar mais coisas no livro, talvez. A obra de Werner Jaeger é talvez a grande referência para o estudo do filósofo de Estagira.