Um país gigantesco, com mais de 1000 anos de história e uma incrível diversidade de etnias e culturas. A desafiadora tarefa de escrever uma história cultural sobre uma nação tão ampla e um período tão dilatado requer uma grande experiência e um domínio respeitável de conhecimento sobre as tradições da Rússia. Coube a Orlando Figes, historiador britânico e especialista em história russa, a missão de escrever um livro magnífico como é Natasha’s Dance- a Cultural History of Russia, obra que analisa a cultura russa desde o século X até o período soviético.
Escrever sobre a cultura russa é bastante difícil. Devido ao tamanho do território e até a presença de manifestações pagãs ou não cristãs, muitas vezes marginalizadas ou escondidas pela identificação da Rússia com o Cristianismo, o historiador pode facilmente ignorá-las para dar maior destaque a uma Rússia idealizada do século XIX ou ao período comunista. Orlando Figes evita esse erro, pois boa parte do livro é dedicada a um estudo sobre a alma do camponês russo; uma alma meio cristã, meio pagã, na qual a convivência dos ideais sublimes do Evangelho convive sempre com a barbárie da Cítia, cuja cultura anterior à presença cristã nunca abandonou de fato o território russo.
A identificação do Cristianismo com a Rússia foi e ainda é muito mais importante do que no Ocidente. Ninguém mais associa a Inglaterra, a França ou mesmo a Espanha ao Cristianismo. Você não admitiria a ideia de que antes de ser brasileiro, por exemplo, você seria cristão. Mas na Rússia até hoje é assim. A herança cesaropapista de Bizâncio aindaestá entranhada na psique russa. Por razões históricas e religiosas. Como Orlando Figes menciona no livro, após a queda de Constantinopla em 1453, cidade que era o centro da religião ortodoxa, Moscou passou a ser considerada uma “terceira Roma”. O nacionalismo russo é indissociável de sua religião ortodoxa. Mesmo nos dias atuais de Vladimir Putin, essa ligação entre estado e religião é bastante evidente. Ainda que o paganismo, o judaísmo e o islamismo fossem desde o início presentes na cultura russa, o Cristianismo é o fator de união nacional.
Historicamente, a nação russa sempre viveu a dicotomia entre Ásia e Europa. O ponto geográfico desta divisão são os Montes Urais. Possivelmente, à parte a religião cristã, até o século XVIII, tendo a tentativa de Pedro o Grande de “europeizar” os russos, a cultura daquele país foi mais asiática do que europeia. Pouco mencionada entre os grandes intelectuais russos do século XIX- e mesmo hoje em dia-, foi a presença durante três séculos dos mongóis no território russo. Orlando Figes, de maneira bem feliz, produziu um capítulo apenas sobre esse tema. Várias palavras russas possuem origem tártara, e mesmo características étnico-raciais foram prolongadas até hoje. Basta ver que Lênin tinha um rosto com expressões mongóis. A história mongol é omitida por certa vergonha, explica Figes, do domínio durante tanto tempo de um povo “bárbaro” e supostamente “inferior”. Enquanto a Europa vivia o início do Renascimento, a Rússia era governada por povos das estepes, sem arte ou qualquer cultura comparável ao Ocidente.
A entrada, se é que podemos escrever assim, da Rússia no grupo das grandes nações europeias aconteceu durante o reinado de Pedro o Grande. Ele queria transformar a Rússia abandonando os antigos costumes da Idade Média, como usar barba, entre outras coisas, e incorporou ao país a técnica, a ciência, a medicina, a arquitetura, etc., criando até mesmo uma nova capital: São Petersburgo. A cidade é uma obra prima e um orgulho da Rússia, mas Pedro o Grande, como todos aqueles que querem fazer tabula rasa da história, criou ressentimentos entre o povo tradicional, que via em Moscou a cidade que representava melhor os valores da Rússia medieval e cristã. São Petersburgo poderia ser bela, mas era artificial. Era como se fosse uma tentativa de mostrar ao Ocidente que a Rússia também era civilizada. Moscou era tida como atrasada, bárbara e asiática, onde os homens ainda usavam barbas; onde ainda se dançavam as tradicionais músicas russas, desprezadas por São Petersburgo; onde a proximidade entre a população ainda era medieval. Em Petersburgo, com suas largas ruas e avenidas, o distanciamento entre as pessoas era muito maior. Dois mundos entravam em conflito.
O século XVIII também foi o de Catarina a Grande. Neste período, segundo Orlando Figes, a presença da cultura francesa foi excepcional. Os nobres praticamente só falavam francês, sendo o russo tido como língua do povo simples, língua de camponês. A francofilia russa só seria abalada com a invasão de Napoleão em 1812. Mesmo as ideias ateias dos revolucionários franceses eram pouco conhecidas em geral. A partir de Napoleão, a França passou a significar para os russos como inimiga da religião, da tradição, do cristianismo russo. De qualquer maneira, no século XIX os russos ainda buscavam um lugar junto às potências culturais do Ocidente como a França, a Inglaterra e a Alemanha. Havia um debate, afirma Figes, entre o modelo europeu e um modelo autenticamente russo, que assumisse inclusive a alma asiática da nação. Dostoiévsky foi um dos que queriam que a Rússia fosse asiática para o Ocidente e Ocidental para os asiáticos.
O século XIX, um período fenomenal para a cultura russa no geral, em especial sua literatura, foi também a que descobriu a presença ao mesmo tempo marcante, mas sempre ignorada historicamente do camponês. O camponês russo era uma figura enigmática. Idealizado como o cristão (e socialista) autêntico por muitos escritores, ele surge com toda força na pintura, na poesia e na literatura; outros, no entanto, viram no camponês, seja por um estudo antropológico ou por recordações da infância, um ser humano sofrido sem dúvida, mas hipocritamente cristão, violento e opressor. A arte deste período busca redescobrir as origens pagãs e Citas da Rússia.
Deve-se criticar Orlando Figes pelo pouco destaque que ele dá ao famosos contos de fadas russos, que são uma das grandes manifestações artísticas russas, típicas de um povo de cultura oral muito desenvolvida. Analfabetos em massa, mas muito criativos. Outra coisa a se mencionar: Orlando Figes não foi capaz de fazer, como Alain Besançon o fez em sua obra sobre a iconoclastia, que a arte russa se desenvolveu como a antítese de Roma. Foi iconoclasta em certo nível. Prestar reverência a um ícone de santo era, muitas das vezes, afirmar-se não tanto como ortodoxo, mas sim como não papista. Também nas inúmeras tradições dos santos russos partia-se do princípio que o santo estava afirmando o contrário da Santo Agostinho, por exemplo. A xenofobia sempre foi parte do caráter russo. A religiosa principalmente. Deveria ter tido um destaque no livro.
A última parte do livro trata do período soviético. Foi uma época na qual se pretendia criar uma cultura do materialismo histórica a ser difundida entre as nações como um novo evangelho. A cultura russa seria internacionalista. O que aconteceu, no entanto, foi que o velho nacionalismo e a religião voltaram à cena. Tanto na Guerra Civil Russa de 1920, como na invasão alemã na Segunda Guerra, o que prevaleceu foi o nacionalismo. Lênin e Stálin apelaram não a Karl Marx para sobreviverem, mas sim ao patriotismo a aos grandes heróis da país como Alexander Nevsky. Mesmo em uma época opressora como foi o período soviético, os russos, que poderia muito bem se recolher a um nível local e marginal, souberam a partir de suas adversidades alcançar e propagar valores humanos universais. Vejam o exemplo de uma obra como Solaris, que alcança até mesmo outras galáxias. Ela seria impensável em um país como o Brasil, no qual culto do local e irrelevante pretende que ser motivo para que outras nações se interessem pelo que temos a dizer. A obra de Orlando Figes é de uma qualidade excepcional. Recomendo a leitura.