Problemas e possibilidades do Transumanismo

uJSJICM

Felipe  Pimenta

“Trasumanar significar per verba

non si poria; però l’essemplo basti

a cui esperienza grazia serba.”

Dante Alighieri, Paradiso, Canto I

O trabalho pretende abordar  algumas visões de representantes do movimento transumanista e apontar problemas éticos e metafísicos que surgem a partir disso. Também irá analisar o conceito de evolução da humanidade e a concepção Transumanista. A tentativa de criar um novo ser humano, mesmo que seja com intenções nobres, tais como o prolongamento da vida, o combate às doenças e uma inteligência expandida, deve ser possível em termos éticos e metafísicos.

Palavras-Chave: Transumanismo. Bioética. Nicolau de Cusa. Proclo. Charles Taylor.

 

Abstract: The Tranhumanist movement represents a great ethical and methaphysiscal challenge. This present work wishes to approach some opinions of the representatives of the Transhumanist movement and to apoint some ethical and methaphysical that appears by that. It also analyses the concept of humanity evolution and what the Transhumanist movement means by an human enhanced. The attempt of creating a new human being, even by noble intentions, as if life extension, fighting deseases, and an enhanced intelligence, must be possible by ethical and metaphysical standards.

Keywords: Transhumanism. Bioethics. Nicholas of Cusa. Proclus. Charles Taylor.

1. Introdução

O ser humano, historicamente, sempre buscou através da técnica e da ciência melhorar sua condição, uma vez que esteve desde o início sujeito às ameaças da natureza, às doenças e ao envelhecimento. Um dos objetivos da ciência é justamente prolongar a vida humana e fazer com que a. mesma possua uma melhor qualidade. Já outras misérias às quais a humanidade está submetida, como a ignorância e a opressão, são causadas pelo próprio ser humano; portanto, ao longo do tempo, homens e mulheres buscam amenizar todas as vicissitudes causadas pela natureza ou pela sociedade usando as ferramentas da razão, no entanto, não pensam, geralmente, em uma busca de um aprimoramento do ser humano alterando suas condições físicas e psicológicas. Um médico busca prolongar o tempo de vida da pessoa, mas não persegue sua imortalidade; usamos a tecnologia para nos auxiliar, mas não pensamos em inserir aparelhos em nossos cérebros que nos ajudem a expandir nossa consciência; a ciência busca o progresso, mas não pensa em acelerar uma suposta evolução do ser humano que o transforme em outro ser superior à condição atual.

O trabalho analisa algumas das tentativas atuais de acelerar este progresso ou evolução humana e suas consequências. Duas das principais obras disponíveis no momento sobre o tema do Transumanismo servirão de referência para esse estudo. São elas The Transhumanist Reader e Radical Evolution. Elas fornecem elementos que demonstram tanto otimismo quanto  pessimismo em relação à possibilidade da ciência e da tecnologia auxiliarem na construção de um futuro pós-humano.

Entretanto, mesmo que a ciência não possa criar um ser humano superior no sentido de ter sua natureza modificada, isso não quer dizer que um progresso e uma “evolução” sejam impossíveis. O trabalho também busca apresentar o conceito de evolução do filósofo renascentista de orientação platônica Nicolau de Cusa. Algumas das principais obras deste filósofo servem de referência para este trabalho.

O trabalho tem por objetivo, portanto, questionar alguns dos temas do movimento Transumanista e suas consequências e apresentar um conceito de progresso filosófico elaborado por um pensador ainda pouco conhecido entre nós. O progresso humano é válido, mas nem todos os meios são adequados para alcançá-lo, mas alguns meios que partam de um aprimoramento interior do ser humano estão disponíveis para todos.

2. O Movimento do Transumanismo.

Historicamente, a ideia que a ciência nos dá o poder de alterar a natureza e fazer avançar a humanidade remonta a Francis Bacon (1561-1626), que afirmava que a natureza deveria ser torturada para que confessasse seus segredos. Com a Revolução Científica do século XVII e o otimismo do Iluminismo do século XVIII, a crença no poder da ciência e da técnica atingiu seu auge. Mas é com o inglês Charles Darwin (1809-1882) que o conceito de evolução entra definitivamente no vocabulário da ciência. O ser humano passa a ser visto como o resultado de um processo de milhões de anos em que a natureza transforma um animal inferior em um ser infinitamente superior, se não em termos físicos, ao menos em termos de inteligência. Não iremos abordar as ideias de Darwin neste trabalho, mas apenas demonstrar que os objetivos do movimento Transumanista são indissociáveis do pensamento evolucionista, e o que a natureza levou eras para realizar, o ser humano pode acelerar em relativamente pouco tempo através das modernas tecnologias.

O termo “Transumanismo” surge com o biólogo evolucionista Julian Huxley, que pretendia com o termo buscar  a transcendência do homem  (2013, p. 8). O filósofo cristão ortodoxo Nikolai Fedorov também é apresentado por More e Vita-More (2013, p. 10) como um precursor do Transumanismo por suas crenças na imortalidade física, ressurreição dos mortos e na colonização do espaço.

O movimento do Transumanismo combina elementos pessimistas e otimistas: pessimistas no sentido de que o ser humano está sujeito a doenças, envelhecimento, morte, etc., e até hoje teve que se conformar com esse estado de coisas que faz parte da própria condição humana; porém, o otimismo também integra o pensamento de quem busca um futuro pós-humano, pois considerar que a tecnologia pode auxiliar no enfrentamento e até na solução dos problemas apresentados anteriormente envolve uma grande “fé” na superação da natureza humana.

O Transumanismo, como todo movimento que busque apresentar-se como científico, também possui uma boa parte de filosofia orientando suas ações. Segundo a definição de More e Vita-More , o Transumanismo poderia ser definido assim:

Philosophies of life (such as extropian perspectives) that seek the continuation and acceleration of the evolution of intelligent life beyond its currently human form and human limitations by means of science and technology, guided by life-promoting principles and values (2013, p. 3).

Filosofias da vida (como as de perspectiva extrópicas)  que buscam a continuação e a aceleração da evolução da vida inteligente além de sua forma e limitação humana atual por meio da ciência e tecnologia, guiados pro princípios e valores de promoção da vida. (tradução nossa)

O conceito de Extropia mencionado por More e Vita-More será mais bem explicado e avaliado na parte da filosofia de Nicolau de Cusa. Mas, como vimos, a filosofia do Transumanismo pretende aprimorar e acelerar a evolução humana e julga que este progresso usando a tecnologia é algo desejável e bom. A humanidade toma em suas mãos o controle da evolução que era da natureza e passa agora a direcionar seu futuro.

O caminho para esta evolução do homem e da mulher não é, entretanto, estabelecido através de meios educacionais, por exemplo. Trata-se mais de um aprimoramento biológico acima de tudo. Nas palavras de More e Vita-More

Trans-Human emphasizes the way transhumanism goes well beyond humanism in both means and ends. Humanism tends to rely exclusively on educational and cultural refinement to improve human nature whereas transhumanists want to apply technology to overcome limits imposed by our biological and genetic heritage. (2013, p. 4)

Transumano enfatiza o caminho pelo qual o transumanismo vai além do humanismo tanto em meios quanto em fins. O Humanismo tende a basear-se exclusivamente no aperfeiçoamento educacional e cultural para promover a natureza humana, enquanto os transumanistas querem aplicar a tecnologia para ultrapassar os limites impostos por nossa herança biológica e genética. (tradução nossa)

Acelerar a evolução humana como entendem os entusiastas do Transumanismo é substituir a seleção natural darwiniana feita pela natureza pela engenharia genética. Sabemos, no entanto, que mesmo a evolução feita pela natureza não livrou qualquer ser vivo da morte, do envelhecimento ou da brutalidade da luta pela existência. O ser humano, apesar da expansão do tempo e da qualidade de vida, continua sujeito à morte e, ao longo dos séculos, a inteligência humana tem permanecido a mesma.

Para que a humanidade possa buscar este aprimoramento por meio da tecnologia, o movimento Transumanista estabelece que o ser humano possui o livre-arbítrio, que abrange, inclusive, a liberdade morfológica (2013, p.15).

Para que a humanidade possa buscar esse aprimoramento por meio da tecnologia, o movimento Transumanista estabelece que o ser humano possua o livre-arbítrio, que inclui, inclusive, a liberdade morfológica (2013, p.15).

Possuímos, supostamente, a liberdade de usarmos nosso corpo para transformá-lo, se quisermos, em uma espécie de máquina, ou a nos submetermos e experiências que busquem um progresso biológico do mesmo.

Alguns dos objetivos desse progresso das capacidades humanas têm a pretensão de expandir a saúde física e mental do ser humano, além de suas capacidades intelectuais e de memória e, também, suas emoções (2013, p. 29). Obviamente, nenhuma pessoa seria a priori contra essas ideias, pois em si mesmas elas são boas. Atualmente, já possuímos medicamentos e tecnologias que proporcionam uma melhor saúde para o ser humano, mas é claro que não alteram a sua natureza, o que é justamente a ideologia do Transumanismo.

Sem dúvida, o objetivo central de todas as ideias transumanistas é o prolongamento da vida humana além dos limites atuais. A “imortalidade”, ao menos em um sentido simbólico, é um ponto  que todos os integrantes do movimento Transumanista tentam alcançar e acham que seja algo desejável. A própria Declaração Transumanista citada por More e Vita-More (2013, p. 54) alega que o potencial humano ainda não foi realizado. A se julgar o pensamento de vários de seus proponentes, o potencial humano possui um tempo muito curto para ser efetivado. Sua natureza atual é como que uma barreira para que algo “superior” possa surgir.

Certamente, concordamos que o aumento da potencialidade da ciência humana deva ser procurado. O que se pretende é estabelecer bases seguras para este progresso, que deve ser possível em termos éticos e metafísicos. O próximo tópico irá abordar essas questões.

2.1. Problemas éticos

As palavras “evolução” e “progresso” são extremamente sedutoras para  grande parte da humanidade e, ainda mais, para os intelectuais e os filósofos. Algo tão complexo e que pretende modificar a natureza humana precisa demonstrar de maneira clara de onde pretende partir e aonde quer chegar.

A própria liberdade morfológica defendida pelo movimento Transumanista envolve muitos perigos que precisam ser debatidos antes que qualquer experiência seja feita. Na leitura dos principais autores que defendem um futuro pós-humano, não encontrei a ideia de que as experiências genéticas ou de uso da nanotecnologia deveriam ser primeiro feitas em animais de laboratório. Aparentemente, o ser humano, com sua liberdade morfológica, irá candidatar-se voluntariamente para ser uma cobaia de tais experiências. Trata-se de uma temeridade, no mínimo.

O autor do livro Radical Evolution (2005), Joel Garreau, é bastante crítico do Transumanismo e suas ideias. Em sua obra, Garreau entrevistou alguns dos principais intelectuais e líderes do Transumanismo, e fica bastante nítido que alterar a natureza humana envolve aspectos um tanto perturbadores e, mesmo, irracionais.

Um exemplo de tais experiências é um projeto denominado Regenesis, que busca fazer com que o ser humano possua a capacidade de regenerar um membro amputado, como um girino. O sapo perde esta capacidade, e o programa busca entender o porquê disso. Isso poderia ajudar no crescimento de um seio depois de uma mastectomia, por exemplo. O coordenador do programa, Kurt Henry, assegura: “we had it; we lost it; we need to find it again”. (2005, p. 28). Nós possuíamos; nós perdemos; nós precisamos encontrar novamente. (tradução nossa)

Em outra parte do livro, Joel Garreau entrevista Ray Kurzweil, um dos principais teóricos do pós-humano. Autor de vários livros, Kurzweil mistura tecnologia com religião em sua visão do futuro da humanidade. Nas páginas do livro de Garreau, Kurzweil imagina um ser humano tão evoluído no ano de 2099, evolução esta que Garreau denomina de “transcendência”, que significa que o ser humano não terá mais um corpo físico, mas sim “espiritual”, podendo projetar livremente um corpo material ou virtual (2005, p. 104). Essa ideia recorda, estranhamente, a antiga heresia cristã do Docetismo, que afirmava que Cristo possuía apenas um corpo espiritual, e não material.

Outra maneira de alterar a natureza humana relatada por Joel Garreau é a de Gregory Stock, que é diretor do Programa em Medicina, Tecnologia e Sociedade da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Seu programa é baseado na Engenharia Genética e utiliza a mais moderna nanotecnologia disponível. Entre os objetivos dele estão alguns de uso militar, como a capacidade de curar uma ferida rapidamente e de bloquear o sangramento em caso de uma perfuração a bala durante o combate. A nanotecnologia afetará outras áreas também. No futuro pós-humano, a própria reprodução humana será modificada. É dele este estranho pensamento sobre o futuro: “traditional reproduction may begin to seem antiquated, if not downright irresponsible”. (2005, p.118) a reprodução tradicional começará a parecer antiquada, senão absolutamente irresponsável. (tradução nossa)

No livro The Transhumanist Reader, entretanto, os autores oferecem alternativas de uma evolução que não envolve a modificação biológica do ser humano, como, por exemplo, o uso de transavatares que estimulam aspectos da personalidade humana e possivelmente os ajudaria a experimentar coisas como divisão do trabalho, diversidade racial, busca da perfeição, etc. (2013, p. 96) Porém, estas alternativas são secundárias diante das grandes ambições do movimento.

Todos estes relatos fazem com que questionemos a própria natureza humana. Não ficam claros os riscos que envolvem uma pesquisa que pretenda fazer com que um membro amputado cresça novamente, ou por que ter um corpo espiritual ainda em um mundo material seria algo desejável aos humanos. Quando um deles usa uma linguagem mais agressiva para definir que a reprodução sexual no futuro seria irresponsável, cabe a pergunta quem definiria isso e se haverá algum tipo de órgão governamental que fiscalizará o ato sexual dos humanos. Certamente, alguns poucos escolhidos serão as primeiras cobaias de tais experimentos e o uso militar, possivelmente, estará restrito a um único país. Como evitar a tentação de utilizar tais vantagens pela eterna busca de poder e dominação?

Precisamos questionar se os seres humanos podem ser usados como objetos de teste por uma ciência empírica que não oferece uma explicação clara de seus objetivos. E mesmo que pessoas adultas voluntariamente se candidatem a essas experiências, elas com certeza estarão inseridas em uma comunidade e em um sistema político. Apesar do otimismo bastante ingênuo exibido por estes cientistas ou pesquisadores Transumanistas, a probabilidade de tais experimentos dar errado, quando aplicados a homens e mulheres particulares, é muito grande, portanto, podemos questionar se a sociedade como um todo ou governos locais assumirão os riscos e as despesas médicas ou de saúde caso as cobaias humanas fiquem com sequelas de uma experiência que vise criar um novo ser humano. São perguntas sem respostas que não vi serem abordadas nos livros pesquisados.

Os fins humanos são importantes demais para serem colocados nas mãos de uns poucos escolhidos. Cabe a explicação sobre a Lei Natural estabelecida por Tomás de Aquino:

 A proper understanding of the ends or purposes of human life was therefore essential to morality and should be achieved by discovering the precepts of natural law. Natural law, as Aquinas conceptualized it, was universal and unchanging. It described supposedly universal human tendencies, such as preserving life, but presented them not simply as empirical facts about human nature but also as manifestations of God’s design for humanity. For Aquinas, therefore, natural law simultaneously described how things were and prescribed how they should be. It was discoverable by reason, which, because it gave insight into God’s purposes, provided guidance on how humans should live. (ENCYCLOPEDIA OF BIOETHICS, p. 1280)

Um entendimento próprio dos fins ou propósitos da vida humana foi essencial para a moralidade e deve ser alcançado pelo descobrimento dos preceitos da Lei Natural. A Lei Natural, como Tomás de Aquino a conceitualizou, era universal e imutável. Ela descrevia as supostas tendências humanas universais, tais como a preservação da vida, mas as apresentava não como meros fatos empíricos sobre a natureza humana, mas também como manifestações do modelo de Deus para a humanidade. Para Tomás de Aquino, portanto, a Lei Natural descrevia simultaneamente como as coisas eram e prescrevia como elas deveriam ser. Era algo que poderia ser descoberto pela razão,  porque dava acesso aos propósitos de Deus, promovia uma orientação de como os homens deveriam viver. (tradução nossa)

A Lei Natural é algo negado pelos Transumanistas. Suas ideias inauguram uma anarquia de ideias e objetivos, e os propósitos humanos deixam de ser comuns para se dissolverem em mundos particulares. Ora, Tomás de Aquino requer que a Lei Natural possa impor-se a todos os homens pela própria força da Lei, que deve ser escrita e levada a ser praticada pelos homens e mulheres (I, q. 90. a. 4). Igualmente, e de modo frontalmente contrário ao entendimento dos integrantes do movimento Transumanista, a “lei é escrita não para a vantagem particular, mas para a comum utilidade dos cidadãos”, como ensina Santo Isidoro de Sevilha (apud Aquino, I, q. 90. A. 2).

Se a pessoa nega a Lei Natural e rejeita a ideia de uma essência humana, que inclui também suas limitações como a morte ou deseja obter vantagens físicas e mentais sobre outros seres humanos, então deixamos de ter uma natureza comum, e inaugura-se uma perigosa desigualdade, pois certamente apenas alguns obterão essas vantagens iniciais. E mesmo que o ser humano deseje criar algo novo, ele deve ter como objetivo produzir coisas que reproduzam os ideais de beleza, bondade e medida, o que justamente falta aos modelos de muitos adeptos do Transumanismo. Abordaremos esse tema adiante no capítulo sobre Nicolau de Cusa.

2.2. Problemas Metafísicos

2.3. Imortalidade

Neste capítulo, pretendo abordar alguns dos problemas metafísicos que surgem a respeito do conceito de evolução e de um futuro pós-humano.

O mundo Ocidental tende a possuir uma ideia muito elementar do que seja evoluir. Via de regra, consideramos que a evolução seja a passagem ao longo de períodos muito extensos de algo menor, inferior ou menos complexo para algo maior, superior e mais complexo. Possuímos estes conceito baseados nas ideias de Charles Darwin. Os teóricos do Transumanismo possuem também esse pensamento, porque todos concordam que o uso das tecnologias para o aprimoramento humano vão sempre e necessariamente produzir algo “melhor” ou “superior”. Um ser humano que viva séculos, ou que seja imortal, mais inteligente, mais ágil, com um corpo etéreo ou que se regenere, é sempre o resultado de tais experiências, e eles em nenhum momento imaginam que algo “pior” possa ser produzido a partir do uso da engenharia genética.

Pelas leituras realizadas sobre o tema, uma grande obsessão de quem busca criar um novo tipo humano é a da expansão da vida para, quem sabe, alcançar-se a imortalidade. A vida em si, considerada em seu tempo cronológico, é vista como o Bem supremo, independentemente de aspectos morais. No livro The Transhumanist Reader, muitos capítulos mencionam ou são dedicados ao tema. O próprio Max More, um dos autores do livro, é presidente da maior empresa de Criônica do mundo, portanto, tem todo interesse no assunto.

Apesar de toda a defesa de quem busca uma extensão da vida durante alguns séculos, ou mesmo indefinidamente, algumas questões são pertinentes de serem abordadas. Por que uma vida sem fim seria algo bom se não possuirmos mais a capacidade de perdê-la? Como seria a consciência de um homem ou de uma mulher que não tivesse mais medo da morte?Por que aprendermos algo ou aprimorarmo-nos se o tempo vai ser dilatado ou passará a ser indefinido?

O processo dialético da vida/morte é negado por quem busca uma expansão exagerada da vida. Como veremos adiante no caso de Aristóteles, o mesmo não poderia aceitar uma tese de que somos mortais/imortais. Ele próprio não acreditava na sobrevivência da alma após a morte. O Transumanismo enfrenta um grave dilema quando entramos no campo da Ontologia, na qual a dialética de Hegel, como interpretada pelo filósofo canadense Charles Taylor, nos servirá de base. A dialética de Hegel, diz Taylor, ensina que todos os seres vivos estão relacionados com o todo, que é algo imediato. A dialética hegeliana, contrariamente a de Aristóteles, reconhece a existência da contradição. A compreensão do processo dialético por Taylor é a seguinte: ele afirma que nenhum ser pode ser autossuficiente e escapar do todo. A morte faz parte dessa contradição. Somos seres finitos que, necessariamente, entramos em um conflito ontológico com o todo. A contradição fatal é ver-se e afirmar-se independente do todo (2014, p. 133).

Alguém que fosse imortal ou que vivesse durante séculos depois que gerações de homens morressem, dificilmente poderia ser chamado de homem. Seria mais parecido com uma divindade presa à matéria. Com a aceitação da dialética, o grande medo das limitações humanas que os transumanistas sentem, deixa de existir. Vida e morte, saúde e doença, juventude e velhice, início e fim fazem parte do caráter dialético da existência. O ser humano e sua essência não mudam por isso, mas mudariam caso tudo isso fosse suprimido. Já citamos, anteriormente, a ideia de que o ser humano não pode escapar do particular e abraçar o todo. A ordem divina, ensina o filósofo canadense, deve necessariamente ser corporificada no particular e morrer em determinado tempo. É a contradição de um ser divino e mortal, mas é algo do qual não há como escapar (2014, p. 223).

2.4. Singularidade

Conforme já mencionado antes no texto, o movimento Transumanista somente considera o aperfeiçoamento biológico da humanidade, não ficando estabelecido como a genética, simplesmente, pode alterar os valores morais e espirituais da humanidade. Eles não mencionam a perfeição última da humanidade como meta final, até porque seria difícil estabelecer o que seria tal “perfeição”. Falam, sim, em progresso ao longo do tempo através de tecnologias e aparelhos criados pelo próprio ser humano, o que nos leva a outro ponto importante de nossa análise.

Um tema bastante debatido tanto no livro Radical Evolution quanto no The Transhumanist Reader é o da ideia de Singularidade. Segundo este último livro, a Singularidade

may refer to a discontinuity or a mathematical point where an object is not defined, or to a cosmological event where measure of the gravitational Field becomes finite. In theory, the technological singularity is a conjecture about the emergence of super-intelligent minds. (2013, p.361)

pode referir-se a uma discontinuidade ou um ponto matemático onde um objeto não está definido, ou a um evento cosmológico onde a medida do campo gravitacional torna-se finita. Em teoria, a singularidade tecnológica é uma conjectura a respeito do surgimento de mentes super-inteligientes. (tradução nossa)

O próprio conceito de Singularidade é compatível com a Evolução. Da mesma maneira que o ser humano evoluiu a partir de um ancestral em comum com os primatas e, a partir disso, dominou todos os animais, a Singularidade prevê que o ser humano possa a vir ser dominado por computadores superinteligentes, pois

The advent of superhuman intelligence might involve augmenting human intelligence to superhuman levels or it might mean that synthetic intelligences leave us far behind while we remain mired in the human condition (2013, p.363)

O advento de uma inteligência sobrehumana deve involver o aumento de inteligência humana para níveis sobrehumanos ou deve significar que inteligências sintéticas nos deixem muito para trás enquanto nos mantemos atolados na condição humana. (tradução nossa)

Nossa crítica, feita através de algumas passagens da obra do filósofo neoplatônico Proclo, procurará demonstrar essa impossibilidade. Proclo, em seu livro Elementos de Teologia (conhecido no Ocidente como Liber de Causis), demonstrou, em termos metafísicos, que

Every thing productive of another is better than the nature of that which is produced.For it is either superior, or inferior, or equal. Hence that which is produced from this has itself either a power productive of something else, or it is entirely unprolific. But if it is unprolific, by reason of this fact it will be inferior to and unequal to its producer, which is prolific, and has the power of producing .(1909,proposition VII)

Toda coisa produtiva de outra é melhor do que a natureza daquilo que é produzido. Pois ou ela é superior, ou inferior, ou igual. Portanto, aquilo que é produzido disto tem em si mesmo ou um poder produtivo ou outra coisa, ou é inteiramente infértil. Mas se é infértil, pela razão deste fato será inferior e desigual em relação ao seu produtor, que é prolífico, e tem o poder de produzir. (tradução nossa)

Em termos metafísicos a causa terá que ser superior àquilo que foi gerado, desta maneira é impossível que um computador ou alguma máquina venha a superar a inteligência humana em qualquer tempo. Ao mesmo tempo, pretendendo usar somente  a tecnologia moderna para dar à luz a um ser humano melhor e aperfeiçoado, o movimento Transumanista entra em contradição, pois através de todas essas pesquisas, estudos e avanços técnicos feitos pelos próprios cientistas, eles mesmos não exigirão esse estudo e dedicação dos seres por eles gerados, haja vista que se eles cresceram em conhecimento e evoluíram eles próprios, o ser gerado por eles será, no máximo, igual a eles, e nunca superior aos mesmo. Proclo afirma

Hence, if it is able to render another thing more perfect, it will also perfect itself before it perfects that which is posterior to itself. The thing produced, therefore, is neither equal to nor better than its producing cause: and hence the producing cause is in every respect better than the nature of the thing produced. (Ibidem)

Portanto, se é capaz de fazer outra coisa mais perfeita, também será capaz de aperfeiçoar a si mesmo antes de aperfeiçoar aquilo que é posterior a si mesmo. A coisa produzida, portanto, não é nem igual nem melhor do que a causa que a produziu: desta maneira, a causa produtora é, em todos os aspectos, melhor do que a natureza daquilo que ela produziu. (tradução nossa)

O ser humano ao longo do tempo procura aperfeiçoar-se através do estudo, do trabalho e por meio de uma análise interior, em forma de um diálogo consigo mesmo. Característica marcante do pós-humano é a dependência completa da tecnologia, que nada mais é do que uma ferramenta criada pelo homem para ajudá-lo em seu cotidiano. O desprezo por uma metafísica ou uma teologia é completo. É como se o ser humano passasse a viver para a tecnologia que ele mesmo criou, mas não podemos dizer que isso seja algo razoável, pois o aprimoramento pessoal do homem e da mulher precisa antes de tudo voltar-se para um autoconhecimento ou para aquilo que o gerou, conforme Proclo ensina

For every intellect either thinks itself, or that which is above itself, or that which is posterior to itself. But if it thinks that which is posterior to itself, since it is intellect, it will turn to that which is less excellent than itself; and thus will not know that to which it turns, because the object of its thought is not in itself, but external to itself: and it will only know the image of this thing, which was generated in itself from it. For that which it has it knows, and that which it experiences, but not that which it does not possess, and by which it is not affected. But if it thinks that which is above itself, if indeed this is done through the knowledge of itself, it will at one and the same time both know itself and that superior nature. But if it knows that alone it will be ignorant of itself, even though it is intellect. In brief, by knowing that which is prior to itself, it will know that it is a cause, and will likewise know the things of which it is the cause. For if it is ignorant of these, it Will likewise be ignorant of that which is the cause of them, not knowing that which produces what it produces by its very being, and what the things are which it does produce. Hence by knowing the things of which the nature which is superior to it is the cause, it will like wise know itself, because it emanates from thence. By knowing, therefore, that which is prior to itself, it Will likewise entirely know itself .(1909, proposition CLXVIL)

Porque todo intelecto ou pensa sobre si mesmo, ou sobre aquilo que está acima de si, ou sobre aquilo que é posterior a si. Mas se pensa naquilo que é posterior a si próprio, desde que seja intelecto, voltar-se-á àquilo que é menos excelente do que si próprio; e assim não conhecerá sobre aquilo que se torna, porque o objeto de seu pensamento não está em si mesmo, mas é externo a si. Daí que só conhecerá a imagem desta coisa, que foi gerada em si mesma a partir dele. Pois aquilo que ele tem ele conhece, e isso é o que ele experimenta, mas não aquilo que não possui e por isso não o afeta. Porém, se pensa naquilo que está acima de si mesmo, de fato isso é feito pelo conhecimento de si próprio, portanto, de um modo único e simultâneo, conhecerá a si mesmo e a essa causa superior. Mas se a conhece isoladamente, será ignorante de si mesmo, apesar que seja intelecto. Resumindo, conhecendo aquilo que é anterior a si próprio, conhecerá o que é a causa e, portanto, conhecerá as coisas que são a causa. Pois se é ignorante delas, será ao mesmo tempo ignorante da causa delas, desconhecendo o que produz aquilo que produz pelo seu próprio ser, e quais são as coisas que elas produzem. Desta maneira, pelo conhecimento de que as coisas cuja natureza é superior à sua são a causa, passará sabiamente a conhecer a si próprio, porque emana delas. Conhecendo, portanto, aquilo que é anterior a si próprio, conhecerá inteiramente o seu próprio ser. (tradução nossa)

A partir deste pensamento de Proclo percebemos que a sabedoria é encontrada não do que vem depois de nós, no caso ou da tecnologia ou de qualquer coisa criada pelo homem, mas sim através de uma autoanálise, partindo posteriormente para a contemplação e o estudo da mais alta metafísica. O ser humano é superior aos objetos que cria, mesmo que se trate de um supercomputador, ao mesmo tempo em que é inferior à Causa que o gerou.  Podemos concluir que o medo que alguns possuem que objetos criados pelos seres humanos dominem o planeta é impossível ou, no mínimo, improvável.

Tendo em vista estas considerações, podemos partir para a parte final de nosso trabalho que irá apresentar o conceito de Sintropia de Nicolau de Cusa, que nada mais é do que uma evolução pessoal a partir de si mesmo.

3. Uma possibilidade da evolução humana

Ao longo deste capítulo, o que pretendemos não é propor um Transumanismo “científico” como aquele que foi abordado anteriormente. Trata-se de uma evolução pessoal e interna, pois acreditamos, tendo como apoio a filosofia platônico-cristã de Nicolau de Cusa, que o ser humano possui a capacidade de progredir; que ele não é algo já “formado” em definitivo; que ele é capaz de elevar-se plenamente e ser copartícipe de uma expansão permanente da capacidade criadora do Universo.

Nicolau de Cusa (1401-1464) foi um filósofo do início da Renascença que ficou conhecido por sua filosofia de inspiração platônica e que ajudou na reconciliação temporária das Igrejas do Ocidente e do Oriente durante o Concílio de Florença (1431-1445). Nicolau de Cusa acreditava na capacidade humana de colocar ordem no mundo, pois o homem e a mulher seriam um microcosmo da Divindade. Antes de tudo, cabe comparar o conceito de Sintropia de Nicolau de Cusa com o sistema de Entropia de Aristóteles, e com a Extropia do Transumanismo.

A Entropia é um conceito que mede o nível de desordem das partículas. Em um Universo considerado entrópico, a perda de energia do mesmo é cada vez maior, por isso caminhamos para um fim ou uma extinção. Pode-se dizer que este conceito é compatível com uma visão bíblica de que tivemos uma Criação inicial, mas que no fim haverá um Juízo Final e o desfecho da História. Mas, certamente, isso é negado pela filosofia platônica, como veremos.

A Entropia aristotélica é revelada pelo texto da Metafísica 1051a 1, no qual Aristóteles afirma que todo ato é superior à potência. O filósofo grego acredita que todo potencial é fonte do mal e da desordem. Ele sustenta

assim, a capacidade de dois contrários pode pertencer a uma coisa simultaneamente, mas os contrários não podem lhe dizer respeito simultaneamente, isto é, os atos- por exemplo, saúde e doença não podem dizer a uma coisa simultaneamente, de sorte que uma delas tem que ser boa. Mas a potência pode, igualmente, ser ambos os contrários ou nem um nem outro, o que resulta em ser o ato melhor. (Metafísica IX, 1051a1)

Com isso, Aristóteles quer dizer que o ser humano não pode elevar-se acima daquilo que ele já é, e nesta passagem já vemos uma antecipação do princípio de não-contradição de sua lógica que irá ser criticada por Nicolau de Cusa.

O conceito de Extropia é definido pelos autores do livro The Transhumanist Reader como não sendo contrário ao conceito de Entropia, mas

the extent of a living or organizational system’s intelligence, functional order, vitality, and capacity and drive for improvement. (2013, p. 5)

a extensão de um sistema intelegente vivo ou organizado, ordem funcional e capacidade e energia para um aperfeiçoamento. (tradução nossa)

Na sequência, eles ampliam a definição como

 to use current scientific understanding along with critical and creative thinking to define a small set of principles or values that could help make sense of the confusing but potentially liberating and existentially enriching capabilities opening up to humanity. (Ibidem)

usar a atual entendimento científico junto a um pensamento criativo e crítico para definir um pequeno conjunto de princípios ou valores que possam ajudar a fazer sentido as confusas mas potencialmente libertadoras e existencialmente enriquecedoras capacidades sendo abertas à humanidade. (tradução nossa)

Como já vimos anteriormente, este progresso do Transumanismo é feito inteiramente pelo uso da tecnologia, e não por um processo interno de Deificação como em Nicolau de Cusa.

O conceito de Sintropia ou Negentropia afirma que o universo está ganhando força e caminha para uma organização cada vez melhor. A potência não é um princípio de desordem como em Aristóteles, mas a capacidade humana de aumentar o seu potencial é cada vez maior, e ela é feita através de uma abertura pessoal, porque “the human mind is the form of a surmised [rational] world, just as the Divine Mind is the Form of the real world.” (2000, p. 6)

a mente humana é a forma de um suposto mundo racional, da mesma maneira que a Mente Divina é a Forma do mundo real. (tradução nossa)

Proclo, neoplatônico como Nicolau de Cusa, já havia combatido a Entropia séculos antes quando afirmava que

 the universe also is perfect, as being always converted to its principles, and imitating the demiurgic conversion. But it is free from old age and disease, as having a flourishing, vigorous, and ever vigilant life, and as participating of admirable powers (2011, p. 443)

o universo também é perfeito, pois está sempre sendo convertido a seus princípios e imitando uma conversão demiúrgica. Mas está livre da velhice e da doença, pois tem uma  vida florescente, vigorosa e sempre vigilante, e participa de poderes admiráveis. (tradução nossa)

Os próprios intelectuais do Transumanismo não negam a Entropia, por isso, presume-se que seu conceito de Extropia serve apenas para adiar a Entropia, e isso é contrário ao pensamento neoplatônico citado anteriormente.

Nicolau de Cusa era um grande adversário do princípio de não-contradição da lógica aristotélica. Ele possuía um conceito chamado de coincidentia oppositorum (a coincidência dos opostos), que harmonizava as aparentes contradições do mundo. Nicolau de Cusa dizia

Hence I observe how needful it is for me to enter into the darkness, and to admit the coincidence of opposites, beyond all the grasp of reason, and there seek the truth where impossibility meeteth me. (2007, p. 43)

portanto eu observo como é necessário para mim entrar na escuridão e admirar a coincidência dos opostos, além de toda a compreensão da razão, e lá procurar a verdade onde a impossibilidade me alcançar. (tradução nossa)

A coincidência dos opostos permite ultrapassar a barreira da lógica aristotélica e seu princípio de não-contradição. A partir disso, Nicolau de Cusa pode afirmar que as contradições se harmonizam, e o homem é um Deus-criado e uma finitude infinita. Por causa disso, ele pode dizer

 Whence I Begin, Lord, to behold Thee in the door of the coincidence of opposites, wich teh Angel guardeth that is set over the entrance into Paradise. ( 2007, p. 46)

Por isso eu começo, Senhor, a contemplá-Lo na porta da coincidência dos opostos, cujo anjo guarda aquilo que está posto na entrada do Paraíso. (tradução nossa)

A lógica de Aristóteles é a guardiã da entrada do Paraíso, que impede que o homem possa transcender a si mesmo, pois todo este potencial é fonte de desordem. Nicolau de Cusa vai além e diz que

The wall’s gate is guarded by the highest spirit of reason; and unless it is overpowered, the way in Will not lie open. Thus, it is on the other side of the coincidence of contradictories that you Will be able to be seen and nowhere on this side. ( HUDSON, 2007, p.127)

O portão do muro que é guardado pelo espírito maior da razão; e, ao menos que seja dominado, o caminho não estará aberto. Assim, está no outro lado da coincidência dos contraditórios que você será capaz de ver, e em nenhum lugar do outro lado. (tradução nossa)

Para Nicolau de Cusa, o homem é uma Imago Dei, e o fato de ser esta imagem de Deus não está relacionado à sua racionalidade, mas sim à sua capacidade de ser criativo (Hudson, 2007, p. 137)

Como uma pequena Divindade em seu domínio, Nicolau de Cusa ensina que o homem deve seguir em suas criações a Lei Natural, da mesma forma citada anteriormente por Tomás de Aquino. O homem é uma imagem e criação de Deus, e tudo que ele cria repete de certa maneira o trabalho realizado pela Divindade. A obra do homem é uma semelhança de seu intelecto criativo e criador. Por isso, Nicolau de Cusa afirma que realizamos em uma escala menor a obra da criação de Deus, criando uma semelhança da semelhança.

Da mesma maneira que o Logos Divino paira eternamente sobre o universo, sempre trabalhando e criando novas Formas, pois Nicolau de Cusa especulava mesmo sobre a possibilidade de vida extraterrestre, o ser humano, com seu intelecto divino também através de sua atividade criadora assemelha-se cada vez mais de Deus.

Dando continuação à ideia Estoica e de Santo Agostinho das Razões Seminais, que o Logos Divino faz florescer a todo o momento, numa espécie de Evolucionismo “cristão”, a potencialidade de novas Formas está presente na natureza, e isso é bom, pois demonstra que o universo não caminha para um fim, mas que ganha força com possibilidades sempre novas de vida, demonstrando um otimismo de tipo platônico/cristão realmente belo. Nicolau de Cusa ensina, portanto, que “the determinable potentiality of matter is infinite, seeing that ´tis never utterly exhausted” (2007, p.70).

a potencialidade determinável da matéria é infinita, vendo que nunca é totamente esgotada. (tradução nossa)

O intelecto criativo do ser humano, mais do que sua razão, permite que ele ultrapasse sua capacidade e alcance algum tipo de Transumanismo. Mas, trata-se de um processo totalmente interno de abertura à Graça Divina porque “for man does not desire a different nature but only to be perfected in his own nature.” (1981, II, 12)

porque o homem não deseja uma natureza diferente, mas apenas ser aperfeiçoado em sua própria natureza. (tradução nossa)

3.1. Transumanar

A principal oportunidade que o pensamento de Nicolau de Cusa oferece para o progresso e a evolução humana está perfeitamente de acordo com a natureza dos seres humanos. Trata-se da ampliação da nossa capacidade de discurso. Isto está dentro das possibilidades de todos nós, e não necessita do uso de nenhuma tecnologia, mas ela pode vir em nosso auxílio para contribuir com o aperfeiçoamento da humanidade. O mundo vive neste século XXI graves conflitos que têm origem em uma ampliação dos meios de comunicação e da internet. Isso produz uma grande quantidade de informação que nos é oferecida vinda de várias partes. Somos confrontados com crenças e opiniões que, na maioria das vezes, são diferentes das nossas. Os problemas mais sérios surgem quando a nossa capacidade de discurso é muito pequena diante da amplitude dos desafios colocados diante de nós. Muitas das ideias que se nos apresentam são aparentemente contraditórias e até mesmo ofensivas inicialmente. Sem aumentarmos nossa capacidade de discurso, a tendência é ficarmos presos a certos conceitos de certo e errado, de sim e de não, que quase sempre são insuficientes para compreendermos o mundo. Daí surgem muitas opiniões erradas, ódios e violências, pois a tecnologia abre diante dos homens e das mulheres mundos ainda não explorados, mas é um erro considerar que a tecnologia por si só nos fará progredir sem progresso interior.

Nicolau de Cusa, muito antes que Copérnico ou Giordano Bruno, já contestava o Geocentrismo que reinava havia séculos. Mas ele não pregava o Heliocentrismo, pois ele ensinou algo muito mais radical: um antropocentrismo que realmente faria o homem evoluir ou “transumanar”, como na seguinte passagem de uma obra sua

For example, if someone did not know that a body of water was flowing and did not see the shore while he was on a ship in the middle of the water, how would he recognize that the ship was being moved? And because of the fact that it would always seem to each person (whether he were on the earth, the sun, or another star) that he was at the “immovable” center, so to speak, and that all other things were moved: assuredly, it would always be the case that if he were on the sun, he would fix a set of poles in relation to himself; if on the earth, another set; on the moon, another; on Mars, another; and so on. Hence, the world-machine will have its center everywhere and its circumference nowhere, so to speak; for God, who is everywhere and nowhere, is its circumference and center. (1981, p. 93)

Se alguém não soubesse que um corpo de água estivesse se movimentando e não pudesse ver a margem enquanto estivesse dentro do barco no meio da água, como ele iria reconhecer que o barco estava se movimentando? De fato, sempre iria parecer para cada pessoa (mesmo que na Terra, no Sol ou em qualquer outra estrela) que ela estava no centro “imóvel”, por assim dizer, e que todas as outras coisas se moviam. Isso também seria o caso se ela estivesse no Sol, pois ela fixa um conjunto de polos em relação a si mesma; se na Terra, outro conjunto; se na Lua, outro; em Marte, outro, e assim por diante. Dessa forma, a máquina do mundo terá seu centro em qualquer lugar e sua circunferência em lugar algum, por assim dizer; pois Deus, que está em todo lugar e em lugar nenhum, é sua circunferência e centro. (tradução nossa)

A “revolução” que Nicolau de Cusa promove é muito impressionante, uma vez que, como o centro do universo passa a estar dentro de cada um de nós, a capacidade do nosso discurso é infinita. Com uma nova imensidão de possibilidades, ampliando o nosso discurso evitaremos toda a tentação de soluções fáceis, incompreensões e ultrapassaremos a barreira da não-contradição. Qualquer tipo de pensamento binário será extinto, e o ser humano poderá alcançar novos estágios sem pretender perder sua forma.

Como o universo está em um eterno processo de vir-a-ser, a harmonização do pensamento de Proclo com Nicolau de Cusa é possível. Porque na filosofia do neoplatônico Proclo, o universo não está pronto pro si mesmo, mas o poder divino está sempre gerando algo novo. Desta forma, o infinto que mencionamos a respeito de Nicolau de Cusa vai produzindo cada vez mais novas possibilidades. O entendimento humano do infinito foi muito bem resumido por Proclo desta maneira

It remains, therefore, that infinite can alone subsist in the phantasy, wich at the same time the phantay does not comprehend. For as soon as it understands, it induces form and bound to that wich is understood, stops the transit of the phantasm by its intellection, pursues its progress, and infolds it in its shadowy embrace. The phantasy, therefore, is not infinit by intellection, but rather by advancing infinitely about that wich is understood. (1992, p. 84)

O que resta, portanto, é que o infinito subsiste apenas na fantasia, que ao mesmo tempo a fantasia é incapaz de compreender. Porque, no momento em que compreende, introduz forma e limite àquilo que compreendeu, e para a transição do fantasma para o intelecto, persegue seu progresso e o envolve com seu abraço de sombra. A fantasia, portanto, não é infinita por sua intelecção, mas sim por avançar infinitamente sobre aquilo que é compreendido. (tradução nossa)

O nosso conhecimento e discurso sempre coloca limites ao infinito. Porém, Deus está sempre expandindo o universo e as possibilidades. Não há um ponto final em nossa jornada. A partir dessa magnífica passagem do filósofo neoplatônico, pretendemos demonstrar que novas capacidades humanas estão prontas para serem despertadas. Cabe, portanto, a cada um de nós promovermos este progresso.

4. Conclusão

Ao fim deste trabalho, podemos perceber que o movimento Transumanista possui graves problemas éticos e, principalmente, metafísicos. Apesar de que os principais autores dos livros citados tentam de todas as formas escapar desses problemas, não há como passar por cima de discussões como a natureza humana e as características que a definem. Gostem ou não esses autores, a metafísica mantém-se de pé. De qualquer forma, o trabalho procurou demonstrar que outra maneira de progresso é possível, e que o ser humano possui sim potencial para “transumanar” repetindo a palavra usada por Dante  na epígrafe de nosso artigo. Por isso considerei válido escrever um capítulo sobre o filósofo Nicolau de Cusa, que juntamente com Hegel, evidenciou o caráter dialético do ser humano.

Consideremos, para terminar, o que o movimento Transumanista tem a oferecer para os grandes desafios atuais da humanidade, que estão longe de serem somente uma questão de prolongamento da vida. Por sinal, países que experimentaram um avanço na longevidade hoje sofrem com o envelhecimento da população, e nações nas quais a ciência é incipiente experimentam uma explosão populacional.

O Transumanismo não possui nada que possa nos orientar em questões tais como preconceitos, racismo, violência, ignorância, obscurantismos, etc. Nicolau de Cusa, entretanto, em seu livro De Beryllo, que significa Os Óculos Intelectuais, afirma que cada ser humano ou Forma são a palavra ou a intenção do intelecto Divino. Para compreendermos como superar todas as questões que afligem a humanidade de hoje e de sempre, Nicolau de Cusa propõe o uso destes óculos intelectuais, que farão que você enxergue a coincidência dos opostos e, com Deus te guiando, “você vai discernir tudo aquilo que é humanamente possível de se dizer” (1998, p.46).

5.  Bibliografia

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica IV. 2. Ed. São Paulo: Loyola, 2010.

ARISTÓTELES. Metafísica.1. Ed. São Paulo: Edipro, 2006.

CUSA, Nicolau de. De Coniecturis. 1.Ed. Minneapolis:The Arthur J. Banning Press,2000.

________ De Beryllo. 1.Ed.Minneapolis:The Arthur J. Banning Press,1998.

________  De Docta Ignorantia. 3. Ed. Minneapolis: Ed. The Arthur J. Banning Press, 1981.

________The Vision of God.1.Ed.New York:Cosimo Classics,2007.

Encyclopedia of Bioethics. 3.Ed. New York:Macmillan Reference USA, 2003.

GARREAU, Joel. Radical Evolution. 1.Ed. New York: Broadway Books, 2005.

HUDSON, Nancy J. Becoming God: The Doctrine of Theosis in Nicholas of Cusa. 1.Ed. Michigan: The Catholic University of America Press, 2007.

MORE, Max,; VITA-MORE, Natasha. The Transhumanist Reader.1.Ed. Oxford: Wiley-Blackwell, 2013.

PROCLO. Proclus’ Metaphysical Elements.Missouri: Thos M. Johnson, 1909.

________ The Commentaries of Proclus on the First Book of Euclid’s Elements. Princeton: Princeton University Press, 1992.

________The Commentaries of Proclus on the Timaeus of Plato. 4.Ed.British Library- Historical Print Editions, 2011.

TAYLOR, Charles. Hegel- Sistema, Método e Estrutura. 1.Ed. São Paulo: É Realizações, 2014.

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