Uma visão ética e filosófica sobre o movimento transumanista

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O transumanismo é fruto da mentalidade progressista que assola o Ocidente desde o século XIX. Insatisfeitos com a condição do ser humano, sempre sujeito a doenças, misérias do corpo e da mente e dos próprios limites que a natureza (ou Deus) colocou, o movimento transumanista busca superar todas essas limitações que, queiram eles ou não, definem o ser humano. Fazer a Humanidade “progredir” parece algo positivo à primeira vista, porém aspectos éticos importantes surgem durante a discussão. “Progredir” e “evoluir” são palavras agradáveis aos ouvidos modernos, pois se têm a impressão de que seja algo otimista ou mesmo desejável para todos. Porém, não haveria algo de profundamente pessimista em julgar que somos inadequados e que devemos, portanto, “avançar”, seja lá por quais meios? Esses avanços serão possíveis? Vamos tentar esclarecer esses pontos.

Hans Jonas é sempre uma grande referência para os assuntos éticos (e também para o gnosticismo). O risco do mau uso da ciência sempre foi uma grande preocupação da humanidade, e graças às tecnologias que surgiram no século XX, as ameaças potenciais do mau uso da ciência cresceram muito. Jonas, em seu livro O Princípio Responsabilidade, faz um alerta sobre o perigo do otimismo científico, que é o de achar que todo o progresso (ou a tentativa de avançar cientificamente) é bom. É interessante lembrar que o Ocidente,muito avançado em termos de ciência e técnica, enfrenta uma crise sem precedentes em sua história graças ao envelhecimento da população, que é resultado justamente de um avanço científico que foi a pílula anticoncepcional. Onde a população mundial mais cresce? Em locais onde não há ciência praticamente, como a África, Afeganistão, Bangladesh, Gaza, etc. Não é a ciência que vai salvar o mundo necessariamente, por isso é ingenuidade não refletir sobre aspectos negativos de cada nova descoberta.

Jonas também reflete sobre algo importante que é a perda da noção de uma essência humana. Se formos seres que podem “evoluir”, por que não tomar em nossas mãos o destino dessa suposta “evolução”? Criar um novo homem e uma nova mulher pode ser tentador. Por que não criar uma nova humanidade em que a morte e os problemas genéticos desapareçam? Sem uma reflexão filosófica e ontológica essas questões não podem ser resolvidas.

Um ser humano que não morresse não poderia ser considerado “humano”. Hegel escreveu muito sobre o caráter dialético da vida. Todos nós só podemos nos reconhecer através do confronto com o outro. Da mesma, forma todo ser humano é resultado também do confronto entre a vida e a morte, pois sem a morte não poderíamos formar nossa personalidade, caráter, ou seja, nossa essência seria outra. Um ser que fosse imortal em nosso mundo seria uma espécie de divindade presa na matéria, ou seja, cairíamos no problema do gnosticismo tão caro a Hans Jonas.

Outra reflexão ontológica que podemos fazer é sobre esse caráter evolutivo que é uma tentação para os progressistas. Se se acredita que o ser humano é o resultado de algo inferior (como o macaco ou seu ancestral comum), é claro que com a ajuda da tecnologia podemos “apressar” a transformação do homem em algum tipo “além-do-homem” (Übermensch), a La Nietzsche. Mas aí temos um sério problema ontológico. De acordo com o filósofo neoplatônico Proclo (412-485 d.C), em seu livro Elementos de Teologia (Liber de Causis), é simplesmente impossível criar algo superior a nós mesmos. Proclo ensina algo que deveria ser óbvio, que é que tudo aquilo que vem depois de algo só pode ser igual ou inferior àquilo que o gerou. Exemplo: o ser humano cria um computador, que por mais que seja o mais potente de todos vai ser sempre inferior a ele. Quando gera um filho, esse novo ser humano vai ser igual a ele. Porém, nada pode ser gerado por ele (e nem por uma Divindade) que seja superior a ele próprio.

O homem não pode criar um super-homem, nem Deus algo superior a Ele mesmo. Da mesma forma, Proclo, em seu comentário ao Timeu de Platão, afirma que criar paradigmaticamente e ‘energizar’ são atributos da Divindade somente. Mantendo o mesmo argumento, é muito claro que também uma humanidade imortal é uma impossibilidade, pois tudo o que tem início no tempo não pode ser eterno. Tudo aquilo que tem um começo obrigatoriamente terá um fim. Devemos temer aventureiros na ciência por causa das aberrações que podem gerar em muitas coisas, mas tudo isso que mencionei em meu texto é uma impossibilidade ontológica. A discussão deve, portanto, ser trazida para a área da filosofia.

O movimento transumanista busca criar um novo ser humano com o auxílio da tecnologia. Em termos antropológicos, a diferença entre o ser humano e uma máquina tende a ficar menos evidente. Não há mais uma metafísica para nos guiar. Se o ser humano supostamente evolui, a tecnologia pode ser um grande incentivo para “acelerar o processo”. O pós-humano tende a transformar o ser humano em uma “coisa”, uma espécie meio humana meio máquina. Quanto à crise do antropocentrismo do Renascimento, essa já era evidente desde Darwin. A partir do momento em que o homem “divino” do Renascimento transformou-se em um macaco mais adaptado, todas as nossas concepções antropológicas e metafísicas do homem foram abaixo. Dessa forma, podemos afirmar que o “homem está morto”.

O erro que destaco nesse movimento transumanista é o do progressismo otimista. Não é uma novidade histórica e provavelmente teremos sempre aqueles que vão dizer que o novo é sempre melhor. Temos defensores atualmente de que a inteligência da humanidade está maior do que antes. Em minha opinião é uma afirmação gratuita e falsa. Quer dizer que somos mais inteligentes do que os filósofos gregos? Será que eles desconhecem que nossos valores filosóficos, científicos e religiosos foram estabelecidos milênios atrás? Que progresso houve desde então?

É bastante duvidoso que a tecnologia esteja auxiliando o progresso da educação, por exemplo. No nosso mundo supostamente tão avançado temos óculos inteligentes que vão auxiliar na educação, mas alguém acha que a presença de computadores e internet nas salas de aula melhoram necessariamente a educação? Pelo que leio a educação está em crise em nível mundial, e mesmo com toda a tecnologia atual a educação brasileira é pior hoje do que 50 anos atrás.

O progressismo do movimento pós-humano tem seus antecedentes na religião e na filosofia. O Judaísmo crê ser uma evolução do paganismo; o Cristianismo uma evolução do Judaísmo; o Islamismo uma evolução que veio superar o Cristianismo e o Marxismo a palavra final que veio soterrar todas as religiões. Citando Fernando Pessoa: “nasce um Deus. Outros morrem. A verdade nem veio nem se foi: o erro mudou. Temos agora uma outra eternidade, e era sempre melhor o que passou.”

Hegel cometeu o mesmo erro em sua Filosofia da História. Ele acreditava que a humanidade estava sempre evoluindo para algo sempre melhor apesar das evidências sugerirem o contrário. Poucos conhecem, no entanto, a visão do filósofo italiano Giambattista Vico. Esse último afirma que o progresso da humanidade não era linear. A humanidade avança sim, mas existem momentos em que há uma profunda regressão e queda no saber e na ciência. Basta ver o que foi a Idade Média comparada à Antiguidade Greco-Romana. Vico dizia que a Idade Média era a “barbárie regressada” em seu livro Ciência Nova.

René Guénon, em seu livro O Erro Espírita, também é bastante crítico do evolucionismo, seja o de Darwin, seja o espírita de Allan Kardec. Como ele percebeu, ambos “evolucionismos” possuem a característica “primária” de considerar que seja o corpo, seja a alma, partem de um estado “selvagem”, para “evoluir” para algo mais “magnífico”. Guenón ensina que o que importa é “a simultaneidade” e nunca “a sucessão”.  René Guénon (pág.151) também destrói a tese de um progresso para a perfeição, pois

“Evidentemente, para eles não pode tratar-se da Perfeição metafísica, única que merece verdadeiramente este nome, e que idêntica ao Infinito, quer dizer, à Possibilidade universal em sua total plenitude; isso lhes ultrapassa imensamente, e nem sequer têm nenhuma ideia a respeito; mas admitamos que se possa falar, analogicamente, de perfeição em um sentido relativo, para um ser qualquer: será, para esse ser, a plena realização de todas suas possibilidades. Agora bem, basta que estas possibilidades sejam indefinidas, em não importa qual grau, para que a perfeição assim entendida não possa ser alcançada “gradual” e “progressivamente”, segundo as expressões do Allan Kardec; o ser que tivesse percorrido uma a uma, em modo sucessivo, possibilidades particulares em um número qualquer, não estaria mais avançado por isso. Uma comparação matemática pode ajudar a compreender o que queremos dizer: se se deve fazer a adição de uma infinidade de elementos, jamais se chegará a isso tomando esses elementos um a um; a soma não poderá obter-se senão por uma operação única, que é a integração, e assim é mister que todos os elementos sejam tomados simultaneamente.”

Recordo que os nazistas queriam durante a Segunda Guerra criar uma nova raça através da Eugenia. Os melhores soldados da linha de frente do exército alemão eram selecionados para as mulheres mais belas e saudáveis da população e eram incentivados a ter filhos. Eles achavam que uma nova raça superior nasceria dessa experiência, mas nada aconteceu. Os alemães que nasceram dessas uniões eram tão iguais e sujeitos às mesmas misérias físicas, morais e espirituais que os alemães das épocas mais obscuras do período medieval ou da época da barbárie das florestas germânicas da Antiguidade.

Em termos éticos podemos classificar as tentativas de criar um novo ser humano como loucura pura e simples, pois ela tenta dar um salto no escuro sobre questões ontológicas. Mais uma vez cito o filósofo neoplatônico Proclo para esclarecer essa afirmação. Em seu Liber de Causis, Proclo afirma que tudo aquilo que quer gerar algo melhor ou superior precisa antes tornar-se perfeito antes que possa gerar algo melhor, mas mesmo que esse “algo melhor” seja produzido, obrigatoriamente será inferior à causa que o gerou. É impossível em termos ontológicos criarmos algo superior a nós mesmos. Proclo também nos ensina que o verdadeiro sábio jamais se preocupa com o que veio depois dele, mas antes procura conhecer a si mesmo para depois conhecer a Deus, que é superior a ele. Portanto, autoconhecimento + o estudo da mais alta Metafísica= Sabedoria. Colocar nossas esperanças no que vem depois, buscando na “sucessão”, como René Guenón ensinou, o suposto aperfeiçoamento da humanidade é sinal de estultícia. Na Filosofia grega tivemos o exemplo de Sócrates, que procurou conhecer a si próprio de forma a alcançar a sabedoria, e depois veio Platão, que colocou nas Ideias o objetivo da ciência.  Dessa forma, se o movimento transumanista quiser levar adiante suas ideias, precisa antes provar que isso seria possível em linguagem filosófica.

 

 

 

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