Karl Popper possui uma admiração sem reservas pelo grande filósofo pré-socrático Parmênides, e nesse livro mesmo quem pouco conhece sobre esse pensador, cuja obra pouco resta, vai passar a admirá-lo também por sua profundidade, espírito científico e de tolerância e, claro, pela paixão com que Popper o exalta durante centenas de páginas.
Para situar melhor o leitor, é importante dizer que Popper nesse livro também enaltece filósofos anteriores a Parmênides, como Tales de Mileto e, principalmente, Xenófanes. Popper tende a criticar Pitágoras, por exemplo, por já ter degenerado a filosofia em um círculo fechado de iniciados, o que é mais religião do que filosofia, segundo ele.
Por que então Popper elogia tanto um filósofo que costuma ser um tanto esquecido em livros de história da filosofia como Xenófanes? Porque de certa forma Xenófanes antecipa certas concepções da ciência moderna como Popper entende que ela deve ser, tais quais: a ciência como conjectura; um otimismo em relação à busca incessante de um conhecimento mais aprimorado, e uma busca pelo conhecimento científico que é sempre uma aproximação da verdade- e nunca um conhecimento certo e definitivo. Como Popper corretamente percebeu, Platão possui um discurso parecido com o de Xenófanes, pois o mito platônico (especialmente seu diálogo Timeu) nada mais é do que uma tentativa de aproximação da verdade, mas nunca uma “verdade” dogmática e definitiva. Xenófanes também é um monoteísta e uma espécie de antropólogo à frente de seu tempo.
O livro em si não é um ensaio escrito de uma só vez por Karl Popper. Trata-se na verdade de uma série de ensaios reunidos ao longo de décadas sobre a filosofia até Platão, com ênfase é claro em Parmênides. Qual o objetivo do autor nesses artigos? No fundo trazer de certa maneira Parmênides e outros para o campo do racionalismo crítico. Seriam os filósofos pré-socráticos cientistas que empregavam naquele tempo o método de Popper? Não, mas o que Karl Popper defende principalmente é o caráter aberto do pensamento de Parmênides. Esse filósofo, assim como os outros do mundo grego, não foi um cientista no sentido que “experimentou” de forma prática suas teses. Parmênides, por exemplo, teria descoberto a esfericidade da Terra, o que eu, por exemplo, sempre acreditei que tivesse sido Pitágoras o autor da descoberta. Ele testou essa tese? Não, porém quando Popper analisa os poucos fragmentos restantes de Parmênides, ele descobre uma característica muito semelhante a seu racionalismo crítico, que é a de um discurso que nada mais é do que uma conjectura.
Quem estuda a filosofia da ciência de Popper sabe que ele é um grande defensor de que uma tese científica deve ser sempre uma conjectura, que deve ser testada e, o principal, deve estar aberta à necessidade de falseabilidade. Curioso é que, em um dos ensaios do livro, Popper aproveite para dar uma cutucada em Thomas Kuhn e sua tese da revolução científica através da mudança de paradigmas. Popper afirma que a tese de Kuhn é falsa porque não existem tais “paradigmas”, mas que teses opostas sempre correm juntas durante a história, até que uma delas prova ser a verdadeira.
O alvo principal dos ensaios do autor é Aristóteles. Popper é um tanto duro com esse filósofo porque ele acredita que quando Aristóteles pretende fazer de sua filosofia uma base certa e definitiva para a ciência, o dogmatismo acaba por ser o resultado. Provavelmente Aristóteles não tinha esse objetivo, pois recordo de sua afirmação de que a ciência está sempre em estado de potência. Ato puro só Deus. Acredito que o estilo de Aristóteles de incorporar o papel de juiz da história da filosofia o tenha prejudicado. Tanto a filosofia de Parmênides quanto a de Platão possui uma característica de abertura, especialmente a platônica, com sua dialética que vai da Terra até o céu e depois desce novamente ao nosso mundo. Aristóteles foi muito pueril ao julgar a cosmologia dos filósofos pré-socráticos como demonstrou Schopenhauer, pois a cosmologia deles era muito superior à dele para dizer o mínimo. Porém Aristóteles foi muito prejudicado pelainterpretação errônea que os filósofos medievais fizeram dele, especialmente os árabes. Quando o islã entrou em contato com as obras do mundo grego, científicas, médicas e filosóficas, os árabes tendiam a ver em Aristóteles um muçulmano avant la lettre, por mais incrível que isso possa aparecer. Devemos isso ao fato de que os árabes viam no primeiro motor aristotélico uma antecipação do monoteísmo radical do Alcorão. Os cristãos tinham Platão e nós temos Aristóteles, pensaram.
Os teólogos do Ocidente precisaram desmistificar o Aristóteles “árabe” para que o pensamento pudesse progredir, no entanto não escaparam de dogmatizar o filósofo grego mais um vez. Não havia como comparar a filosofia de Aristóteles nem com Platão nem muito menos com a dos pré-socráticos, cujas obras estavam desaparecidas há séculos. Como os medievais também possuíam uma obsessão por “certezas”, Aristóteles caiu como uma luva para os teólogos cristãos.
O que Popper mais denuncia em Aristóteles (e também em Francis Bacon) é o método indutivo em ciência. O grande herói dele, Parmênides, praticava o método dedutivo, que é o método que Popper defende em sua moderna filosofia da ciência. Parmênides é a prova viva que a ciência grega é fruto de uma alta metafísica, e esse mesmo filósofo, como Popper notou, ironiza a todo o momento todos os que acreditam que nosso conhecimento venha pelos sentidos. O mundo em que vivemos é o reino da opinião, e a plena certeza das coisas somente os deuses possuem. Tudo isso veio pela metafísica e não por experiência prática. É uma pena que Popper não insista mais nesse ponto durante o livro, mas como um todo é uma grande obra de filosofia da ciência.