Diego Gracia é o grande especialista em Bioética espanhol e a referência nessa área para toda América Latina, inclusive o Brasil; ele é psiquiatra e graduado em Filosofia. No livro Pensar a Bioética- Metas e Desafios, Gracia vai muito além de uma simples introdução ao tema da Bioética, pois também aborda os fundamentos filosóficos dessa ética e demonstra também o que a mesma não deve ser. Os fundamentos filosóficos da Bioética são importantíssimos, pois sem eles toda a discussão ficaria restrita a aspectos econômicos ou utilitaristas. A ciência, como dizia Martin Heidegger, não tem capacidade de pensar sobre a própria ciência, pois isso é tarefa da Filosofia.
O livro Pensar a Bioética aborda vários aspectos complexos sobre um tema que lida com aquilo que é mais importante nesse mundo: a vida humana. Gracia escreve sobre os fundamentos econômicos dos gastos crescentes com a saúde, e nesse caso percebe como os gastos com a mesma passaram a ser considerados como um bem de consumo, muito influenciado pela doutrina de Keynes, que antes de tudo queria construir uma sociedade de consumidores. Keynes, reconhece Gracia, foi uma influência positiva não só para a economia no geral mas também para a área da saúde pública. O problema apontado por Gracia é que no início tinha-se a ilusão de que com o tempo os gastos dos governos com nessa área seriam decrescentes, pois através da prevenção as doenças não iriam desenvolver-se para algo mais grave. Acontece, diz o autor, que com tamanha oferta de serviços de saúde, foram criadas novas demandas na área, e pela primeira vez os pacientes, agora consumidores, tiveram a oportunidade de decidir quais serviços gostariam de ter. Outra questão foi que os governos passaram a não ter mais o controle de quais exames- e sua quantidade- que os médicos começariam a exigir dos pacientes, com isso os gastos governamentais com a saúde explodiram em todo o mundo.
Na parte filosófica, Gracia, que é um discípulo de Xavier Zubiri, faz uma extensa análise desde os fundamentos do Juramento Hipocrático até a filosofia moderna. Toda a tentativa de transformar a Bioética e seus fundamentos em teologia ou dogmas impostos de cima para baixo são rechaçados. Foi-se o tempo em que instituições como a Igreja católica podiam fazer isso sem reação das partes envolvidas. A Bioética tende a seguir o princípio Liberal de autonomia pessoal, do direito à privacidade e ao próprio corpo. Gracia segue e defende a ideia aristotélica da prudência e da sabedoria prática. Isso significa que nas grandes decisões da área da Bioética, é sempre bom lembrarmo-nos da prudência, e que os casos particulares não seguem um padrão, por isso cada decisão tende a ser diferente da tomada anterior. A phronesis aristotélica é que vai servir de modelo.
Em relação ao Juramento Hipocrático, Gracia afirma que o mais importante nele é o estabelecimento do conceito de excelência que ele produziu, e isso é algo atemporal e que tem paralelos com a concepção moderna da vocação ou chamado (Beruf) de Max Weber. A busca pela excelência significa uma grande responsabilidade pessoal. Como o livro ensina, na história somente existiram três profissões: o sacerdócio, a magistratura e a medicina. Isso significava um grande privilégio pessoal de ser um dos poucos escolhidos para aquela profissão, e também implicava a garantia da impunidade, afirma o autor, pois dificilmente os profissionais dessa área eram responsabilizados por seus eventuais erros. Hoje em dia não mais se admite essa diferenciação entre ofícios e profissões, afirma ele.
Gracia refuta a alegação de que o juramento condenaria o aborto por sua proibição de ministrar “instrumentos abortivos”. O autor esclarece que essa “proibição” refere-se a uma tentativa da nova profissão médica, nascida com Hipócrates, de diferenciar-se dos simples leigos ou cirurgiões que existiam na Grécia daquele tempo e que iriam perdurar por muitos séculos ainda. “Abortar” não era crime em si, mas não era digno da nova profissão médica, mas deveria ser feita pelos “cirurgiões” inferiores.
No próprio caso do aborto – durante séculos considerado um tema de pouca importância pela própria Igreja, que seguia a doutrina aristotélico-tomista de que a alma humana só apareceria no feto após um período de 40 dias -, ele passou a ter uma nova importância a partir da Filosofia de Leibniz, afirma Gracia, por este defender a infusão da alma no feto desde o início. Porém, o autor afirma que toda a discussão acerca do problema do aborto e da manipulação das células-tronco embrionárias não é movida por esse tipo de especulação teológica. Gracia ensina que existe uma deturpação nessa área do conceito de Aristóteles de ato e potência, pois existe uma diferença entre a possibilidade e a potência de algo, diz ele, que afirma ainda que o embrião tende a ser possibilidade- e não potência de algo-, “pois a vida envolve também o tempo”. Lembrando sempre que Aristóteles afirmava que o Ser jamais está em potência.
Outro tema polêmico que sempre gera intensos debates é o da eutanásia, que também é abordado no livro. Gracia defende a autonomia pessoal para esse caso, mas nunca quando envolve uma depressão pessoal ou em uma possível utilização para abreviar a vida de uma pessoa idosa, liberando assim recursos da área da saúde para os mais jovens. O critério deve levar em consideração o sofrimento físico e espiritual da pessoa, e no caso do paciente não poder manifestar-se, a família deve ser ouvida. Claro que nesse caso a prudência deve ser sempre levada em consideração pelo médico que vai tomar a decisão final.
Considero esse livro tão bom para quem quer estudar o tema da Bioética quanto o livro de Beauchamp e Childress Princípios de Ética Biomédica.