A Dialética em busca da Verdade

220px-Hegel_portrait_by_Schlesinger_1831

“Então Hegel pode justificadamente dizer que este mundo é “pervertido” (verkehrt) em si mesmo, a perversão de si mesmo, porque não é meramente o oposto. O verdadeiro mundo, ao contrário, é ao mesmo tempo a verdade projetada como um ideal e sua própria perversão. Agora se temos em mente também que um dos principais objetivos da sátira é expor a hipocrisia moral, a inverdade do mundo como ele é supostamente para ser, a verdadeira mordacidade do verkehrt torna- se aparente. A perversão da verdadeira realidade torna-se visível atrás da sua frente falsa desde que em todas as instâncias satíricas o retrato é “o oposto em si mesmo”, seja se isso tome a forma de um exagero, a inocência em contraste com a hipocrisia, ou seja o que for.



 É neste sentido que o mundo verkehrt é mais do que uma direta oposição do que parece ser. Hegel ensina especificamente que qualquer visão seria superficial no qual “um mundo é o da aparência; e o outro é o mundo em si mesmo”. Esta é uma posição que o entendimento supõe, mas, na verdade, não é no sentido que aqui exista uma oposição de dois mundos. Ao invés disso, é o mundo “verdadeiro, suprassensível” que contém ambos os aspectos e no qual divide a si mesmo esta oposição e assim relata a si mesmo.

 Como a Fenomenologia expressamente ensina, seria muito simplista se alguém tomar a punição como punição apenas em aparência, e na realidade ou em outro mundo que ela exista para o benefício do criminoso. Apenas o pensamento abstrato do entendimento permite tal conversa de dois mundos, e neste relato das coisas não existe reverso especulativo. A reversão que a punição implica é também não de um atual efeito contrário no qual o criminoso pretende defender a si mesmo. Essa não seria a posição da justiça em si mesma, mas antes de tudo da vingança. É claro que existe uma lei imediata de retribuição, mas a punição tem um significado bastante oposto a isso, e assim em Hegel isso é chamado de “inversão” da vingança. O indivíduo buscando vingança pretende que ele mesmo seja a preocupação essencial em oposição ao criminoso, e busca restaurar sua existência ferida através da destruição do malfeitor. Porém, a preocupação da punição é muito diferente, ou seja, não é apenas com a violação da lei. O efeito contraproducente da penalidade não é mera consequência da violação, porém pertence à essência verdadeira do malfeito. O crime como crime demanda punição, o que quer dizer que ele não tem a urgência de uma simples ação, mas, ao invés disso, existe na forma da universalidade do crime per se. Então Hegel pode dizer que, a “inversão disso (Verkehrtheit derselben) é a punição, que o crime se torna o oposto do que era previamente”. A punição como inversão significa que a punição tem um laço essencial com o malfeito. A punição é razoável. O criminoso, como homem razoável que deseja ser, deve voltar-se contra si mesmo. No seu Sistema de Ética, Hegel descreve de maneira impressionante como essa reversão passa da abstração e idealidade no fenômeno da má consciência. A sensibilidade do criminoso à divisão dentro de si mesmo, pode ser anestesiada pelo medo de punição e também por sua resistência à realidade iminente, mas sempre retorna no reino ideal da consciência. Isso significa que o erro do ato se mostra sempre que a punição é chamada.

   (…) que a punição é requisitada como a necessária inversão do malfeito significa que ela é reconhecida como inversão. Dessa forma, a reconciliação da lei com a realidade oposta do crime ocorreu. Se isso é aceito e levado adiante e a punição torna-se atual, ela cancela a si mesmo, e de maneira correspondente a autodestruição do criminoso termina, e ele novamente torna-se um com si mesmo. Com a aceitação de seu destino, a dicotomia que prevalece na sua existência – de um lado o medo da punição; do outro as dores da consciência – é eliminada.

Aqui também podemos dizer que o mundo verkehrt na qual a punição “não é aquela que prejudica e aniquila o homem. mas antes é uma extensão da Graça que preserva a essência do homem”, não é simplesmente uma inversão do mundo abstrato onde a punição e o malfeito são opostos. Também revela a perversidade daquele mundo abstrato, e o eleva para uma “esfera mais alta” do destino e sua reconciliação com este.”

Hans-Georg Gadamer, Hegel’s Dialectic

Na obra já citada de Gadamer, a dialética hegeliana é explicada ao leitor em toda sua profundidade. Nessa questão da punição ao crime ou ao malfeitor, Hegel está novamente aplicando sua dialética na qual o ser humano, para definir sua personalidade, necessariamente deve ser confrontado com aquilo que é contrário. A História avançaria através desses choques dialéticos, mesmo as religiões. No caso do crime, Hegel afirma que a punição não deve ser vista como algo apenas imediato, mas sim como um avanço na formação da personalidade do homem através da dialética. Na verdade ele estaria afirmando que esse mundo por si mesmo teria essa oposição, pois ele é o reino da Lei e da sua rejeição, e que essa inversão seria uma elevação a um mundo suprassensível que nada mais é do que a extensão da Graça. Gadamer afirma nessa obra que o mundo invertido de Hegel é uma espécie de aplicação da sátira à Filosofia. Apenas invertendo esse mundo podemos ver sua perversidade. O que Hegel está nos ensinando é importantíssimo, segundo Gadamer, pois o que achamos que nesse mundo é mau, no mundo invertido é bom. Gadamer afirma que Hegel conseguiu livrar o homem de ser que apenas se move a partir de leis; antes disso, Hegel recuperará o sentido do autokinoun, que nada mais é que o ser que move a si mesmo dentro de si mesmo.

Na página 40 desse livro, Gadamer nos oferece uma explicação magnífica do que Hegel pretende antes de tudo em sua teoria do mundo invertido é a busca pelo “absoluto universal”, que nada mais é do que o noeton eidos platônico, de acordo com Gadamer. Portanto Hegel ensina que o mundo invertido não é uma simplória oposição física entre as coisas desse mundo, dessa maneira Gadamer diz que Hegel está nos ensinando que o mundo invertido é na verdade reflexão sobre si mesmo.

Toda essa importante reflexão feita a partir de um dos conceitos mais complexos e fascinantes da filosofia hegeliana servem para analisarmos um dos piores aspectos da sociedade brasileira que é a impunidade reinante e certa mentalidade romântica de parte da população em relação aos criminosos.

Lendo o pensamento de Hegel acima percebemos que antes de tudo leva-se em conta o aspecto imediato da lei e a punição do crime. Ora, o que Hegel afirma é que esse mundo é movido justamente pelo estabelecimento das leis e sua consequente violação. Aparentemente grande parte da sociedade acredita no dogma romântico de Rousseau de que o homem é bom por natureza; porém, tanto Hegel quanto a Teologia católica afirmam que a partir da ação no mundo o homem não é bom de maneira alguma. Somente o cadáver é inocente, afirma Hegel.

Em uma sociedade na qual a lei é frequentemente violada, ninguém passa a ter noção do conceito platônico do autokinoun, pois não há o confronto e tudo corre solto. Estamos acostumados a acreditar que a punição é má em si mesma e que outros caminhos devem ser buscados, portanto, dessa maneira nunca saímos da armadilha em que nos metemos.

Todo esse conceito metafísico é alheio à nossa mentalidade, pois somos incapazes de uma reflexão mais aprofundada. Como olhamos apenas para o imediato e para o sensível, toda a profundidade dessa passagem de Hegel é-nos estranha. Nossos legisladores desconhecem que a lei que é aplicada em um determinado momento não funciona para aquela ocasião específica, mas que também é a representação da punição do crime per se, conforme Hegel ensina.

Estudando a Filosofia platônica também temos meios de estudarmos o problema da desordem em nossa sociedade. Para Platão, antes de iniciarmos o método dialético, é preciso que saibamos o que é o Bem, o que, para ele, é o Uno. O método dialético de Platão tem a característica que vai do mundo até as Ideias e das Ideias desce para o mundo. Para Reale, para que a dialética funcione é preciso que as Ideias gerais como Idêntico- Diferente, Igual-Desigual, etc., sejam abstraídas do Uno das suas supremas determinações.1

Sem conhecermos a essência de cada coisa é impossível ser dialético, afirma Platão. O que é mais grave é que os governantes, legisladores e a população desse país que desconheça o Bem viverá como em um sono perpétuo, diz ele. Será necessário enfatizar qual país vive nessa situação?

Aquela que talvez seja a mais desconhecida das doutrinas platônicas é a chamada Díade-do pequeno- e –do- grande. Esse é o princípio do mal e da desordem, segundo Platão, porque produz o ilimitado e sem proporção. Todo excesso, muito ou pouco, causa a desagregação do Estado. O Bem produz a unidade e a ordem e deve ser o objetivo de uma sociedade e suas leis. Conforme afirma Reale2, o Estado imperfeito e caótico é dominado pela dualidade e pela multiplicidade. Ele cita a seguinte passagem da República para confirmar essa tese:

É preciso chamar as outras com um nome maior: de fato cada uma das outras cidades são muitíssimas Cidades e não uma cidade. Em primeiro lugar, são duas em todo caso, inimigas uma da outra, uma dos pobres, outra dos ricos. E em cada uma delas existem depois muitíssimas. E se as trata como se fossem uma erras completamente; se, ao contrário, as trata como muitas, dando a umas as coisas das outras, as riquezas e as potências e até as próprias pessoas, conseguirás muitos aliados e poucos inimigos. E quando a tua cidade for governada com sabedoria , como agora foi estabelecido, será a suprema, não digo por fama, mas verdadeiramente a suprema, mesmo que disponha só de mil defensores.

Assim, chegamos ao nosso destino, àquele que já havia sido abordado por Hegel no início do artigo. Saindo dessa simples oposição entre justo e injusto, a dialética vai alcançar a justa medida- a medida em relação à medida de Platão, que deve ser o objetivo de todo o Estado e legislador.

1 Para uma nova interpretação de Platão. pág, 274

Ibid. pág, 264

%d blogueiros gostam disto: