Impressionante e assustador. Essas duas palavras são as que melhor definem o livro de Hubert Selby Jr, “The Demon”, que é um clássico do autor sem tradução em português. Selby Jr tem um estilo peculiar de escrita no qual ele não usa aspas ou, por exemplo, travessão, quando algum personagem vai iniciar alguma fala. Seu inglês é simples, apesar de que algumas expressões idiomáticas tornam a leitura um pouco difícil em algumas passagens. Ele também foi o autor do livro “Requiem for a Dream” levado ao cinema no ano 2000, e que teve o título no Brasil de “Réquiem para um Sonho”. Selby Jr ficou conhecido por abordar o submundo da sociedade americana, mas isso não deve enganar quem lê The Demon, pois aqui o autor conseguiu alcançar um nível de profundidade que fala ao Homem de todas as épocas.
A estória do livro é sobre a vida do personagem Harry White, um jovem executivo de 30 anos muito bem sucedido, mas que possui um lado obscuro em sua alma, pois é um sedutor que tem uma obsessão em deitar-se com todas as mulheres que vê pela frente. Aparentemente seria uma estória bem simples, porém conforme o livro vai progredindo tudo vai ficando um pouco mais sinistro. O título da obra tem um duplo significado: esse “demônio” é referente ao personagem em si, mas também ao “demônio” interior que corrompe a personalidade de Harry.
Esse ímpeto demoníaco que induz Harry a saciar constantemente sua luxúria muitas vezes leva-o a cometer pequenos erros que algumas mulheres percebem, pois o fazem parecer um tanto imaturo. Com esse tipo de comportamento, Harry passa a ter problemas também na empresa em que trabalha, pois seu patrão percebe a partir da análise do comportamento diário de seu empregado, o caráter inconstante da personalidade de Harry.
Harry vai percebendo que a partir de erros e atrasos no trabalho que está perdendo o controle sobre si, apesar de não consegue saber o porquê isso acontece. Selby Jr demonstra de maneira perfeita o resultado do comportamento luxurioso de seu personagem principal. Esse livro possui muitos significados filosóficos, sendo que um filósofo pode servir de base para essa análise: São Tomás de Aquino. No caso de Aquino, usaremos sua obra Os Sete Pecados Capitais.
O livro também possui um aspecto religioso, de forma que o autor não diz que não foram oferecidas oportunidades de redenção a Harry, pois ele sabe que Deus ajuda os seres humanos através de outros seres humanos. O personagem se apaixona por Linda, uma mulher que se torna um ponto de equilíbrio em sua vida. Ele realmente ama sua esposa, mas a cegueira da mente, uma das filhas da luxúria, o impede de enxergar um fim mais profundo em seu casamento. Apesar de ter achado que o ato de casar-se iria pôr um fim em seu comportamento libidinoso, e o faria ter um melhor rendimento na empresa que trabalhava, apenas no início isso aconteceu. Isso porque a luxúria produz a irreflexão e a inconstância de propósitos. Essa inconstância produz um comportamento errático no personagem, pois em um momento é dedicado e no outro é relaxado; de um dia para o outro decide mudar-se para ver se consegue afastar-se dos locais que produzem sua perdição; num dia é carinhoso com sua esposa e no outro a ignora, etc.
O personagem perde o controle de si cada vez mais; mesmo casado procura outras mulheres para ter uma relação sexual, mas com o tempo mesmo o sexo passa a não saciar esse desejo por emoções incontrolável que ele possui. Harry passa a roubar objetos, equipamentos e dinheiro do escritório onde trabalha; mais adiante decide do nada que quer matar alguém. Tudo isso também possui uma explicação pelo fato de Harry ser dominado por outro pecado capital que é o da acídia (erroneamente traduzido como preguiça). São Tomás afirma que a acídia (tristeza) leva a pessoa a fugir do que a entristece e a buscar o que o agrada. Harry fica triste por causa da incapacidade que tem de controlar sua luxúria, mas como não consegue encontrar nenhuma alegria nos bens do espírito (e nem em seu casamento), passa a buscar a saída nos prazeres do corpo, como diz Aquino. A emoção de roubar ou de matar alguém causa um prazer orgástico em Harry que aplaca sua tristeza momentaneamente.
Mesmo com a ajuda oferecida por sua esposa, seu patrão e seu psiquiatra, Harry perde o controle de sua vida. Sexo, roubo e assassinato levam o personagem à loucura. No fim do livro está o simbolismo mais profundo da estória. Não vou entrar em maiores detalhes, mas tudo se passa no dia de Páscoa. Harry está morto moralmente e espiritualmente. Toda a cena se passa dentro da famosa Catedral de St Patrick em Nova York. O cardeal fala que Cristo ressuscitou, que irá renovar nossas vidas e que Ele nos libertou do jugo do demônio. Cristo nos perdoou e através de Seu sacrifício fomos salvos. O cardeal ofereceu o Corpo e o Sangue de Cristo a uma pessoa ao lado de Harry, porém ele rejeitou a salvação. O desprezo pelos bens espirituais é também fruto da luxúria. Da mesma forma que o Demônio já havia dito, ele também gritou internamente : não servirei! A partir disso sua perdição estava selada. Ele corre desesperado da Catedral mas, antes disso, o autor descreve uma última tentação diabólica de Harry quando ele estava na rua e observa uma menina bem pequena tendo a roupa trocada pela avó para a festa de Páscoa. Selby Jr narra que aquela visão atingiu a vista de Harry “como se seus olhos estivessem sendo penetrados por um ferro quente.” O fim de Harry é infernal e confirmam as palavras de Santo Isidoro:”dar um escândalo é a morte da alma, mas desesperar é descer vivo ao Inferno.”
O livro de Hubert Selby Jr é um dos melhores romances que já li, e é realmente um mergulho no que existe de mais assustador no espírito humano. É um livro para refletirmos e analisarmos já que muitas pessoas hoje em dia (como talvez em todas as épocas) repetem esse comportamento demoníaco do personagem. O Homem é livre para aceitar a Graça, mas pode também rejeitá-la. Selby Jr deixa claro que Harry, sozinho, jamais poderia salvar-se, e isso vai contra todo o Pelagianismo reinante no mundo de hoje. A Graça foi oferecida a Harry, mas ela exige a livre cooperação do Homem para poder operar. Livro atemporal.