Resenha: Prometeu Acorrentado, de Ésquilo

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“Foi em sua juventude – a saúde estava queimando seu sangue e seus poderes cresciam dia a dia.

Então a arrogância de Prometeu falou completamente a Epimeteu, seu amigo e irmão:

Sejamos diferentes dos muitos que estão na multidão geral. Pois, se seguirmos nosso costume no exemplo comum, seremos uma recompensa comum e nunca seremos sanguinários e profundos.”

Carl Spitteler, Prometheus und Epimetheus (tradução nossa a partir do original alemão)

Es war in seiner Jugendzeit – Gesundheit rotete sein Blut und taglich wuchsen seine Krafte – . 
Da sprach Prometheus Obermutes voll zu Epi metheus seinem Freund und Bruder: 
Auf lass uns anders werden, als die Vielen, die da wimmein in dem allgemeinen HaufenI 
Denn so wir nach gemeinem Beispiel richten unsern Brauch, so werden wir gemeinen Lohnes sein und werden nimmer sptiren adeliges Gluck und seelenvolle

Carl Spitteler, Prometheus und Epimetheus (tradução nossa a partir do original alemão)


Prometeu Acorrentado faz parte de uma sequência de três peças escritas por Ésquilo, e os estudiosos não sabem dizer em qual ordem ela está entre essas três, o que torna ainda mais difícil a análise dessa peça que muito influenciou poetas e pensadores nos séculos posteriores. A história é sobre os deuses, sendo que Prometeu está, desde o início, preso a uma rocha e condenado a sofrer um terrível suplício por ordem de Zeus. Esse último foi convencido por Prometeu a não aniquilar a raça dos homens em sua fúria. Zeus recusou aos homens os seus dons, da mesma forma que pensou em enviá-los ao Hades. Graças à piedade de Prometeu, a raça humana pôde sobreviver. Entre os dons que Prometeu deu aos homens estava o de não desejarem mais a morte. Porém, o grande benefício que Prometeu concedeu aos seres humanos foi o fogo divino que Zeus havia proibido de lhes ser concedido. Por esse motivo Prometeu sabia que iria ser punido, mas não com tamanho rigor por parte de Zeus.

Eric Voegelin escreveu sobre essa peça na sua obra O Mundo da Pólis. Ele não acha que possamos definir Prometeu Acorrentado como uma revolta do homem contra Deus. Voegelin define Prometeu como um sophistes. Hermes dirige-se a ele com essas palavras:  “Tu, o sophistes, amargo acima de toda a amargura.” Prometeu é um sofista por ter levado a ciência aos homens, especialmente a matemática (sophismata). O problema, esclarece Voegelin, é que Prometeu cometeu uma artimanha, e reclama de não ter sophisma para livrar-se da sua punição. Falta a Prometeu sabedoria, que se expressa em sua authadia, que Voegelin traduz como autossatisfação escancarada. A authadia é também uma desobediência à ordem dos deuses. Prometeu ajudou aos homens, mas isso o levou a ter o orgulho da inventividade, segundo Voegelin.

Esta opinião, no entanto, é conservadora e não capta a profundidade da revolta de Prometeu. Santo Agostinho em seu comentário ao Gênesis também afirma que o pecado original seria a desobediência. Sim, Voegelin critica Marx por ter adotado o pensamento de revolta de Prometeu que exclama: “odeio todos os Deuses”. Não julgo que Ésquilo estava criticando a frase de Prometeu na sequência da peça. Antes de qualquer suposto orgulho da inventividade estava o AMOR pela humanidade. Existe na atitude de Prometeu uma emancipação da humanidade em relação à indiferença dos Deuses.

Tanto Prometeu quanto Jó são heróis da civilização. Ambos sofrem a punições horrendas devido à atitude de inconsciência da Divindade. Jó, no caso, no plano moral, como tão bem captou Jung. Na peça, em determinado momento Mercúrio age exatamente como os amigos e a mulher de Jó; ao invés da compaixão com o sofrimento de Prometeu, prefere justificar a irreflexão dos Deuses.

A impressão que temos é que tanto Prometeu quanto Jó enfrentam uma Divindade no qual o poder de criar se sobrepõe a um amor pela Criação. A desobediência de Prometeu não é mais grave do que o sofrimento de homens e mulheres lançados à própria sorte pelos Deuses; Jó perde a família e os bens a partir de uma aposta de Deus com Satanás (!), e o mesmo Deus coloca sua capacidade de criar monstros acima do sofrimento das mortes causadas por Ele mesmo e das justificativas de Jó.

Portanto, Voegelin está errado em sua análise. Esta suposta “revolta revolucionária” de Prometeu, um modelo para Marx, poderia então ser equiparada a uma “revolta” de Buda quando descarta qualquer deus para colocar toda a responsabilidade do Cosmos na vontade humana. Lembrando que a “artimanha” de Prometeu pode ser equiparada à parábola do administrador infiel dos Evangelhos, que é uma fonte de interpretações psicológicas para Jung. Sem este avanço ficaríamos presos à Lei. Se a humanidade tivesse ficado satisfeita com sua situação em um mundo cheio de adversidades, fruto talvez de um poder que parece estar acima de uma moral ou da compaixão, e que não questionasse o porquê do mal e do sofrimento, pouco teríamos avançado. Então, podemos afirmar que a revolta de Prometeu e sua atitude são pré-requisitos para a ciência humana uma vez que este mundo está longe de ser perfeito e nossa situação é precária; quando Jó se justifica, e quando ficamos indignados com a atuação do próprio Deus, os seres humanos ganham em força psicológica na compreensão do Mal no mundo.

Quanto à citação que fiz de Spitteler, que Jung tanto estudou, ela capta muito bem este trabalho do indivíduo em seu processo de levar adiante a individuação. Esta individuação não seria possível sem a união ativa do trabalho, da inventividade e da intuição do mal no mundo. Não haveria esta individuação em um universo conservador no qual o mundo estaria justificado, Deus fosse visto como o Sumo Bem e o Mal fosse diluído ou negado. Se somente tivéssemos que agradecer, o trabalho de redenção não somente nossa como do mundo, ficaria comprometido ou não existiria. Sendo assim, Prometeu e a humanidade dão início a uma ação profunda, que carrega dentro de si a contradição de também ser muitas vezes devastadora, mas que são o reflexo de um mundo no qual o Bem e o Mal convivem.

 

 

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