Um Sonho do Humanismo
Thomas Mann escreveu, certamente, um livro magnífico, onde grande parte da mentalidade europeia do início do século XX encontra-se representada. Não é um livro de fácil leitura, tanto pela relativa lentidão em que os principais acontecimentos são narrados quanto pelos temas filosóficos que são mencionados. São esses últimos que mais me chamaram a atenção nesse livro.
Hans Castorp é um jovem engenheiro que pouco entende dos grandes temas que estão sendo debatidos na Europa daquele tempo, que de certa forma estão todos resumidos nos personagens Settembrini e Naptha. O primeiro representa o humanismo da Revolução Francesa e do Iluminismo; o segundo é uma mistura da catolicismo-fascismo-marxismo.
Settembrini e Naphta travam debates titânicos durante o livro, apesar de que eles são poucos dado o tamanho do livro. Settembrini é a encarnação dos valores que o próprio Thomas Mann pregava. O personagem, se formos classificá-los como representações de países que lutaram na primeira guerra, representa a França, e Naphta é o avatar do império católico Austro-Húngaro.
Naphta é um personagem complexo porque ele representa diferentes tipos de filosofias, todas no fundo totalitárias. O seu catolicismo jesuíta, com sua submissão à autoridade, e com características militares de engajamento político desde aquela época, mistura-se a uma união de política e religião que existiu na vida real no império austríaco. Mann aproveita para atrelar ao jesuitismo o marxismo. Nisso ele foi profético, uma vez que os jesuítas das décadas seguintes pegaram até em armas para impôr o comunismo. Todo um conservadorismo excessivo, misturado com um nacionalismo herdado do movimento romântico, formam a alma de Naphta. Toda a eloquência que ele utiliza para demonstrar conhecimentos teológicos vindos da Idade Média são sublimados por suas palavras agressivas contra a burguesia e a Revolução Francesa. O modo como Mann apresenta esse grande reacionário pode tanto nos ensinar sobre o modo de agir a direita católica como da esquerda hegeliana. Ele é um microcosmo dessas duas doutrinas que se odeiam.
Settembrini é a antítese de Naphta, uma vez que é muito mais tolerante e racional-para não dizer moderno. É maçom, esclarecido e tenta servir de professor para Hans Castorp. Todos os grandes valores trazidos pelo Iluminismo e espalhados pela Revolução e Napoleão são defendidos com grande ardor por Settembrini. Mann sabia que toda essa racionalidade estava ameaçada pelo reacionarismo da direita católica, pelo progressivismo assassino do comunismo e pela ascensão do fascismo, com seu antissemitismo e irracionalismo. Veja que o fascismo escancarado de Naphta o faz até defender o filósofo louco do nazismo, Ernst Haeckel. Settembrini, dessa maneira, é uma forma de pensar do século XVIII que está lutando nas trincheiras contra o obscurantismo jesuíta-fascista da Áustria ( Naphta).
O duelo entre os dois termina de forma trágica. Naphta é o fascismo de 1945 em seus momentos finais, e Thomas Mann não poderia saber que isso iria acontecer. O fascismo está muito mais presente que o marxismo em Naphta, até porque o fascismo também é contra a burguesia. É mesmo um personagem sinistro e repugnante.
No meu entendimento, isso tudo precisa de um pouco de estudo sobre a filosofia e a história europeia do final do século XIX e início do século XX. Fica claro para quem lê, que Thomas Mann acertadamente acreditava que o início da primeira guerra teve motivos religiosos( também), e que o ódio que Settembrini devotava à Áustria católica e intolerante também era compartilhada por todos os humanistas daquele tempo.
O livro tem esse tema como seu ponto mais elevado. Termina de maneira poética, não antes de narrar histórias de amor, heroísmo, irracionalismo e cientificismo, ou seja, boa parte do que a Europa produzia de bom e de ruim na época. O humanismo vence, em parte, nessa história. No mundo real, viria a sofrer sérios abalos no decorrer do século XX. Quem vencerá no final: o humanismo ou a barbárie? Um livro histórico.