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Hans Jonas e a religião gnóstica
Décadas após ser publicado, The Gnostic Religion mantém-se como a principal fonte para o conhecimento do fenômeno gnóstico. Jonas inicia seu livro situando o leitor na história da Grécia e do oriente próximo. Os impérios do oriente como a Pérsia e a Babilônia eram instáveis, e na época a conquista de Alexandre, estavam enfrentando uma decadência cultural. O que havia de novo no oriente era o sincretismo religioso, o monoteísmo judaico, a astrologia Babilônia e o dualismo iraniano. Nessa mesma época na Grécia, o mundo da Pólis desaparecia aos poucos.

A grande contribuição dos orientais era o sincretismo religioso, ou a mistura de deuses, enquanto o espírito grego havia criado o Logos, o método teórico de exposição, sendo que os orientais tinham o seu pensamento marcado por imagens e símbolos exemplificados nos mitos e rituais, sem expô-los de uma maneira lógica. Jonas explica que muito da cultura oriental foi assimilado pelo pensamento grego, mas que existia uma outra parte que foi rejeitada e circulava nos subterrâneos e que estava por explodir.

Era uma mistura de mitologia oriental e elementos da filosofia grega, especialmente do platonismo. No início da era cristã, a onda oriental manifesta-se com maior força: o judaísmo helenístico, principalmente a filosofia judaico-alexandrina, a expansão da astrologia babilônica, coincidindo com a manifestação do pensamento fatalista no ocidente, com cultos orientais misteriosos, o início do neo-pitagorianismo e a ascensão da escola neo-platônica.

Depois de situar o leitor nesse mundo do sincretismo helênico, Jonas define essa onda oriental e o termo gnose. O movimento tinha uma característica religiosa, estavam preocupados com a salvação, exibem uma concepção transcendente de Deus e possuem um acentuado dualismo como Deus e o mundo, espírito e matéria, bem e mal, vida e morte, fazendo que esse movimento seja caracterizado como uma religião dualística e transcendente de salvação.

O termo gnose é grego e significa conhecimento. Santo Irineu irá identificar a gnose como uma heresia cristã, mas Hans Jonas também falará sobre um gnosticismo judaico pré-cristão, um gnosticismo helênico-pagão e a religião de Mani. A gnose é o conhecimento de Deus e também a tentativa do possuidor do conhecimento de fazer parte da essência de Deus. Adolf Von Harnack, em uma frase famosa, definiu a gnose como a “aguda helenização do cristianismo”. Jonas estabelece alguns dos principais dogmas do pensamento gnóstico:

Teologia: exibe um dualismo radical, sendo a divindade estranha ao universo o qual não criou e não governa. O mundo foi criado pelos poderes mais baixos( arcontes),e o Deus transcendente está oculto de todas as criaturas, e não é compreensível por conceitos naturais.
Cosmologia: o universo é o domínio dos Arcontes ,sendo considerado uma vasta prisão, cujo calabouço é a Terra, a cena da vida do homem. Os arcontes dominam o mundo e utilizam, por exemplo, a lei mosaica para escravizar o homem. Os arcontes têm como líder o Demiurgo, o deus-criador do Timeu de Platão.

Antropologia: existe o mundano e o extra-mundano. Tanto o corpo como a alma são produtos de poderes cósmicos que o formaram na imagem do primeiro homem( arquétipo). Preso na alma está o espírito, ou pneuma, a parte divina que caiu na prisão do mundo. Preso na carne, o pneuma está adormecido e intoxicado pelo veneno do mundo. Está na ignorância. Seu despertar e libertação se dará com o conhecimento.

Escatologia: o mais importante é o conhecimento do Deus transcendente, como diz uma famosa fórmula dos valentinianos( seita gnóstica). “ o que liberta é o conhecimento do que nós éramos e do que nos tornamos; de onde estávamos e onde nós fomos lançados; o que é nascimento e o que é renascimento”.

Moralidade: os pneumáticos, ou seja, os possuidores da gnose estão separados do resto dos homens. Daí seguem dois tipos de caráter: o ascético e o libertino. O primeiro possuidor da gnose evita todo o contato com o mundo; o segundo está livre da tirania da lei de Moisés. Tu deves ou tu não deves está abolido. O gnóstico já está salvo, portanto a lei não se aplica a ele. Com essa moral antinomista, o pneumático viola as leis do Demiurgo e confunde o domínio dos Arcontes, permitindo assim de forma paradoxal o caminho para a salvação.

Segue um capítulo destinado à exposição do imaginário gnóstico e sua liguagem simbólica como a luz e a escuridão, vida e morte, a queda e a saudade da verdadeira morada, a intoxicação do mundo, a noção do chamado e o mito gnóstico da queda de Adão e Eva.

Na segunda parte do livro, Jonas apresenta os sistemas de pensamentos gnósticos, começando com Simão, O mago, na sequência o conhecido hino da pérola que é um dos mitos mais famosos do gnosticismo. O gnóstico Marcião de Sinope merece um capítulo à parte, pois sua heresia foi uma das maiores ameaças à fé cristã e suas ideias voltaram a aparecer ao longo da história. Jonas diz que o pensamento de Marcião estava livre de toda a fantasmagoria dos gnósticos comuns e que o mais importante em seu pensamento é que o Deus criador é estranho ao mundo.

Na teologia de Marcião existe a antítese entre o deus-criador( Demiurgo) e o Deus escondido e desconhecido. A mais importante antítese é entre o Deus justo e o bom Deus. O Deus justo é o Deus da lei do antigo testamento e o bom Deus é o do evangelho. O bom Deus é estranho ao mundo, desconhecido do homem, o qual não é seu criador. A sua conclusão a respeito da existência de dois deuses resultará em um ascetismo que condena o casamento e a reprodução, sendo que seu ascetismo, ao contrário do cristão, não buscará a santificação da existência, mas é resultado de uma revolta contra o cosmos.

O livro ainda possui dois capítulos relativos à gnose Valentiniana e a de Mani. Jonas demonstra que o pensamento gnóstico era não só hostil à religião cristã, mas também ao pensamento clássico. A gnose destruía a noção de cosmos da filosofia grega. A visão de encanto e beleza que o céu produzia para os antigos filósofos foi completamente desvirtuada pelos gnósticos. A música das esferas não era mais ouvida e o céu passa a ser visto com terror. A visão gnóstica não é nem pessimista nem otimista, mas é escatológica. O mundo é uma prisão e mau, mas existe a salvação no Deus extra-mundano.

Outra coisa que faltava aos gnósticos e o filósofo Plotino percebeu isso, era a falta da ideia de virtude. Para os gnósticos nada de bom poderia vir deste mundo. Santo Irineu conta que os gnósticos achavam que não precisavam de obras para a salvação porque ela viria pelo simples fato do fiel ser espiritual, sendo o pecado permitido. Algumas seitas gnósticas pregavam que através de sucessivas reencarnações o homem teria que experimentar todo o tipo de vida e pecados para ser libertado do poder dos anjos criadores, assim podendo ascender até Deus.

A gnose voltaria a surgir em diversos períodos da história como no caso do catarismo, nas diversas seitas do protestantismo, basta ver o lema de Lutero “crê firmemente e peca muitas vezes”, claramente de origem gnóstica, assim como sua crença e a de Calvino na existência de um duplo deus ( ver Max Weber). Eric Voegelin também identificará a gnose no comunismo e no nazismo. A religião gnóstica é um tema complexo e fascinante e essa obra de Hans Jonas é a melhor introdução que possuímos sobre esse tema.

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